Não é de hoje o flerte
de cineastas da Nova Hollywood com a cultura e o cinema do Japão. Vale lembrar
a portentosa realização de Mishima: Uma
Vida em Quatro Tempos (1985) por Paul Schrader – que já havia, alguns anos
antes, escrito com seu irmão Leonard o roteiro de Operação Yakuza, dirigido por Sidney Pollack –, a inspiração aberta
de George Lucas, na concepção de Star
Wars (1977), em A Fortaleza Escondida
(1957), de Akira Kurosawa, e o apoio dado a esse último pelo próprio Lucas e
por Francis Ford Coppola na produção de Kagemusha:
A Sombra do Samurai (1980). No entanto, ao realizar Silêncio, Martin Scorsese tem motivações distintas da de Lucas,
interessado no espírito de aventura de Kurosawa, ou de Schrader, fascinado pela
concepção radical de honra de seu biografado, o escritor Yukio Mishima. É claro
que, contando uma história que se passa no Japão do século XVII, Scorsese se
referencia visualmente em alguns cânones do cinema desse país. O diretor filma,
por exemplo, seu protagonista navegando rumo ao desconhecido de forma a remeter
a uma cena semelhante de Contos da Lua
Vaga (1953), de Kenji Mizoguchi, e encerra a sequência da morte de um
determinado personagem no mar, após corrida desesperada atrás do que dá sentido
a sua existência, com um plano quase idêntico àquele que conclui o já citado Kagemusha. Mas Silêncio é um filme sobre fé cristã, e, por isso, tem muito mais a
ver com o passado de Scorsese no Ocidente que com o cinema japonês.
A referência a esse
passado não se reduz à exaustivamente citada formação católica do diretor, mas,
sobretudo, a como ele manifestou sua religiosidade no outro grande filme
cristão que realizou, A Última Tentação
de Cristo (1988). O protagonista de Silêncio,
Padre Rodrigues (Andrew Garfield, em grande atuação), é um jesuíta que se quer
de fé inabalável. Colocado diante de provações insuportáveis em sua missão no
Japão, ele tem delírios de grandeza que o fazem se ver como repetidor do
calvário de Cristo. Mas o personagem não tem toda essa força que imagina ter e
duvida mesmo da presença de Deus em sua vida. No fim das contas, ao apostatar
repetidas vezes, Rodrigues acaba se aproximando mais de Kichijiro (Yôsuke
Kubozuka), seu guia e Judas particular, que do ideal de Cristo que carrega. E é
justamente ao se tornar profundamente humano e suscetível ao fracasso que o
sujeito se assemelha a um outro Cristo: aquele apresentado por Scorsese em A Última Tentação de Cristo, que, na
cruz, se entrega lindamente à tentação de se imaginar numa vida ordinária, casando-se
com Maria Madalena e constituindo família. Interessa primordialmente ao diretor
a faceta humana desse personagem, bem como da religiosidade derivada dele, daí
a admiração que Silêncio carrega
pelas ações de Rodrigues. É quando o jesuíta fraqueja, revelando sua incapacidade
de morrer pelo cristianismo e a opção por, ao invés disso, manter a fé oculta
até o fim da vida enquanto a nega publicamente, que Scorsese mais se identifica
com o protagonista e adere a ele.
A comparação entre Silêncio e Até o Último Homem (2016), de Mel Gibson, também já feita à
exaustão muito por conta da presença de Garfield em ambos os filmes, se revela
então bastante produtiva. É que, diferentemente de Scorsese, Gibson aposta num
registro mítico de seu protagonista, Desmond Doss, soldado adventista que se
recusa a carregar qualquer arma no campo de batalha e que, ainda assim, salva dezenas
de vidas. Doss surge em Até o Último
Homem como um mártir a ser celebrado, já que integralmente devotado a suas
crenças, encarnando, na guerra, o Cristo-Deus de Gibson, já apresentado de
forma literal em A Paixão de Cristo
(2004). No fim das contas, portanto, Silêncio
e Até o Último Homem revelam as
concepções de cristianismo de seus respectivos realizadores, mas só o fazem
completamente ao estimularem um olhar retrospectivo para essas duas
filmografias, para os momentos específicos em que Scorsese e Gibson filmaram
suas próprias versões – considerando, claro, que A Última Tentação de Cristo adapta o livro homônimo de Nikos
Kazantzakis – da vida daquele que embasa sua fé.
Silencio, Até o Último Homem, A Última Tentação de Cristo e Paixão de Cristo: diferentes representações de Cristo e do cristianismo, de acordo com a fé de seus respectivos diretores |
Há ainda a questão da
representação dos japoneses por Scorsese. Diferentemente, por exemplo, dos
indígenas de A Missão (1986), para
citar outro filme protagonizado por jesuítas, os não-cristãos não são tratados
em Silêncio como tabula rasa, como
povos disponíveis à catequese. Scorsese e o co-roteirista Jay Cocks, em diálogo
profundamente respeitoso com o texto de Shusaku Endo (escritor japonês e
cristão) que estão adaptando, fazem um grande esforço por compreensão da
complexidade daquela sociedade, exposta, sobretudo, nas conversas de Rodrigues
com o inquisidor Inoue (Issei Ogata, hipnótico, mesmo que flertando com a
caricatura em sua composição). E por mais que o filme permaneça o tempo todo ao
lado de seu protagonista, incondicionalmente identificado com ele, e que as
torturas infligidas a Rodrigues e a outros cristãos sejam absolutamente cruéis,
também é justificável, dentro da própria narrativa e considerando o contexto
histórico no qual ela se desenvolve, a postura refratária do Japão ao
cristianismo, reveladora do medo tanto de dissolução de sua cultura pela
entrada de outra, ocidental, quanto do domínio político, seja pela própria
Igreja ou por nações católicas como Portugal e Espanha.
Scorsese, portanto, se
mostra aberto às razões do outro em Silêncio.
Retornando à comparação anterior, essa seria uma postura talvez inimaginável no
cinema de Mel Gibson. Até o Último Homem
nem é, provavelmente, o melhor exemplo a ser citado nesse sentido, já que em
sua narrativa a relação dos ocidentais com os japoneses não tem qualquer
destaque – esses últimos são apenas adereços de cena, inimigos genéricos
utilizados como trampolim para Doss fazer seus milagres. É mais interessante
pensar num caso como o de Apocalypto
(2006), impressionante filme de ação que acaba por justificar a conquista dos
maias – e, por extensão, dos outros povos indígenas da América – pelos cristãos
ao apresentar os primeiros como degenerados, opressores implacáveis de seus
semelhantes. A generosidade de Gibson com os não-cristãos é, portanto, bem
menor que a de Scorsese: no limite, para o ator-diretor, eles devem ser
catequizados ou conquistados pela violência.
No entanto, vale um
adendo: em Apocalypto, Gibson não
deixa de se abrir a uma cultura muito diversa da sua ao se identificar e levar
o espectador à identificação com um protagonista maia, que fala um idioma
desconhecido, hoje praticamente desaparecido. Scorsese não topa esse exercício
em Silêncio. Ele escancara Rodrigues
como seu alter-ego ao colocar um ator anglófono para interpretá-lo – não seria
surpreendente que, nas mãos de Gibson, o idioma e os intérpretes dos
personagens jesuítas fossem de fato portugueses. Essa escolha não deixa de ser
compreensível, para além das razões comerciais que provavelmente a motivaram, dado
o peso que Silêncio tem para seu
diretor. Trata-se, afinal, de um projeto extremamente pessoal (talvez o mais
pessoal desde Gangues de Nova York,
de 2002), gestado ao longo de quase 30 anos por um homem que, na juventude,
quase se tornou padre, e que deve ter experimentado, nessa fase de sua vida,
dúvidas com relação à fé semelhantes às de Rodrigues – mas, claro, inserido
numa realidade bem menos extrema que a dos jesuítas perseguidos pelas
autoridades japonesas no século XVII.
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