terça-feira, 16 de outubro de 2012


[festival do rio - parte 7]

César Deve Morrer 
Cesare Deve Morire, 2012
Paolo Taviani & Vittorio Taviani


É muito bonito ver os agora octogenários irmãos Taviani, figuras tão vinculadas a um cinema político italiano que parecia esquecido em algum lugar da década de 1970, realizarem uma obra ao mesmo tempo tão atual e tão em sintonia com sua filmografia como César Deve Morrer. Os diretores lançam um olhar delicadíssimo para o cotidiano de um grupo de detentos que encenam "Júlio César", de Shakespeare, numa prisão de segurança máxima, fazendo de sua narrativa uma bela demonstração do que a arte é capaz de fazer com as pessoas. Não há espaço para discursos piegas ou epifanias artificiais: aqueles homens brutalizados e sem perspectivas, interpretados por não-atores de rostos marcantes e expressivos, desenvolvem gradualmente uma sensibilidade artística, ao relacionar, durante os ensaios para a peça, o universo shakespeareano às suas próprias histórias de vida (é particularmente comovente o momento em que o sujeito responsável por interpretar Brutos se lembra de um amigo do passado no momento em que tenta decorar um fala de "Júlio César").
César Deve Morrer é um filme simples, mas dotado de uma imensa capacidade de dar voz aos seus personagens, de compreender, com a câmera, seus mais profundos e conflituosos sentimentos. Uma pequena obra-prima que funciona também como excelente e criativa releitura contemporânea do próprio texto de Shakespeare.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012


[festival do rio - parte 6]

Tabu 
Tabu, 2012
Miguel Gomes


Tabu pode ser visto como dois filmes em um. Em sua primeira parte, intitulada "Paraíso Perdido", acompanhamos Pilar, uma melancólica mulher de meia idade que, em meio a seu cotidiano enfadonho pontuado vez ou outra por alguma solitária sessão de cinema, se aproxima de sua já bastante idosa vizinha, figura decadente e um tanto irritante. Aurora, a vizinha, coadjuvante dessa metade inicial de Tabu, acaba se revelando como a verdadeira protagonista do filme de Miguel Gomes (diretor do aclamado Aquele Querido Mês de Agosto) ao ter sua juventude narrada por um grande amor daquela época na impressionante segunda parte da obra, chamada de "Paraíso". Abrindo mão completamente dos diálogos, Gomes conta uma triste história de amor proibido que, no fundo, funciona também como metáfora da perda dos territórios coloniais africanos por Portugal - o paraíso africano de exotismo e amores impossíveis perdido por Aurora, seguido de seu retorno amargurado para Lisboa, acompanha o movimento de descolonização da África portuguesa.
Ao completar, diante do espectador, a trajetória de decadência de Aurora e ao estruturar sua segunda metade como uma contação de história bem próxima àquela que Pilar assiste num cinema em seu prólogo, Tabu se mostra um filme uno, coeso e coerente em suas duas partes aparentemente tão distantes. Miguel Gomes encerra sua narrativa lançando para fora do cinema um espectador totalmente imerso na atmosfera melancólica do filme - algo semelhante ao que ocorrera com Pilar no já citado prólogo - e com a certeza de ter visto mais uma verdadeira joia do cinema português contemporâneo.


[festival do rio - parte 5]

Dossiê Jango 
Dossiê Jango, 2012
Paulo Henrique Fontenelle


Já faz um tempo que a ditadura militar brasileira - e temas correlatos a ela - se transformou em temática cara ao cinema documental produzido em nosso país, e a abordagem que geralmente surge nesses filmes é um tanto questionável. A historiografia contemporânea avançou muito em debates sobre questões como a participação da sociedade na ditadura (chamada, por alguns, de civil-militar) e as motivações político-ideológicas dos grupos que optaram por pegar em armas contra o regime, mas o cinema ainda parece preso a um olhar memorialístico, militante e pouco problematizador. É um cinema "histórico" que, ao invés de propor a discutir questões, mantém-se preso à prática de biografar grandes personagens. Não à toa, raramente se encontra nesses filmes depoimentos de historiadores atuais, conhecidos por renovarem os estudos sobre o período: é em figuras como Jacob Gorender e Moniz Bandeira que os cineastas vão buscar uma voz de autoridade. 
Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle, se insere nessa tendência, ainda que rompa com ela em alguns pontos. Sempre que busca construir um olhar mais macro sobre os anos da ditadura, o filme de Fontenelle cai em lugares-comuns: caracteriza o regime militar como algo alienígena, completamente desvinculado da sociedade brasileira (e basicamente imposto pelos interesses norte-americanos no continente), seguindo um caminho que se aproxima mais da memória que se buscou construir sobre aquele período do que das mais avançadas pesquisas históricas. No entanto, Dossiê Jango tem o mérito de ir além da simples biografia do ex-presidente (algo que, afinal, já foi feito com qualidade por Sílvio Tendler em Jango, há quase trinta anos), vinculando-se a uma espécie de cinema documentário investigativo, com uma trama envolvente e teorias conspiratórias bem desenvolvidas. Ainda assim, o filme não consegue escapar totalmente da vala comum dos olhares maniqueístas sobre os anos da ditadura militar. Cinema não é história, claro, mas me parece inegável que aquele teria muito a ganhar com algumas discussões complexas e fascinantes propostas por esta recentemente. 

domingo, 7 de outubro de 2012


[festival do rio 2012 - parte 4]


Indomável Sonhadora 
Beasts of the Southern Wild, 2012
Benh Zeitlin


As bestas do sul selvagem a que se referem o título original de Indomável Sonhadora são as pessoas que vivem isoladas por uma barragem em algum lugar remoto dos Estados Unidos. Mais especificamente, a protagonista Hushpuppy e seu pai Wink, que a criou para ser um pequeno animal, forte, resistente e brutal. Num determinado momento, por exemplo, Wink impede que um amigo ensine à menina como preparar um carangueijo para comer, exigindo que ela o faça de maneira selvagem, destroçando o animal com as mãos e bebendo seu sangue. Pode parecer horrorizante, mas o maior mérito do filme de Benh Zeitlin é justamente não julgar seus personagens, figuras decadentes e sujas que encontram felicidade no domínio que exercem sobre aquele mundo. E está em Hushpuppy, interpretada pela magnífica Quvenzhané Wallis, o melhor exemplo disso: por mais comovente que seja ouvi-la confessar a falta que sente de ser embalada no colo por alguém, de ser cuidada, a personagem é, graças à criação dada por seu pai, uma pequena besta sobrevivente, capaz de olhar nos olhos de qualquer ameaça e enfrentá-la sem sentir medo. Nesse sentido, a analogia com os ameaçadores animais pré-históricos auroques é, ainda que um pouco óbvia, plenamente coerente com a proposta do filme.
Lembrando um pouco A Árvore da Vida no uso da música e de algumas belas imagens da natureza e Onde Vivem os Monstros pela ligação metafórica entre uma protagonista infantil e figuras monstruosas, Indomável Sonhadora é um filme delicado e respeitoso no olhar que lança para figuras carregadas de uma fascinante brutalidade.

sábado, 6 de outubro de 2012


[festival do rio - parte 3]

Nós e Eu  
The We and the I, 2012
Michel Gondry


Michel Gondry é mais conhecido por seus filmes esquisitinhos, especialmente quando em parceria com Charlie Kaufman (A Natureza Quase Humana e o belíssimo Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças). E, como o diretor faz muito bem esse tipo de cinema, não deixa de ser estranho vê-lo brincando de Spike Lee nesse Nós e Eu. Um filme que acompanha a viagem para casa de um grupo de estudantes negros de Nova York, após o último dia de aula do ano letivo, tem muito pouco a ver com o que Gondry está acostumado a fazer. Isso não necessariamente seria um problema (ver um artista ousando sair de sua zona de conforto é sempre bom), mas o cineasta parece um iniciante ainda aprendendo a manusear sua câmera e a construir uma narrativa, tateando por um universo que, pelo jeito, desconhece totalmente.  


Hotel Mekong 
Mekong Hotel, 2012
Apichatpong Weerasethakul


Apichatpong Weerasethakul consagrou-se definitivamente ao vencer o Festival de Cannes em 2010, com Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, um filme de difícil apreensão, carregado de simbolismos pouco usuais para nós, ocidentais, mas com uma narrativa instigante e envolvente, ainda que em ritmo lento. Seu novo trabalho, Hotel Mekong, parece ser o cineasta tailandês levando sua estética ao limite: assim como em Tio Boonmee, tem-se uma narrativa silenciosa, contemplativa e plena de símbolos mas, infelizmente, sai de cena a capacidade de envolvimento demonstrada no longa de 2010. O que resta é um tom monocórdico, com os personagens falando sempre muito baixo enquanto ouvimos o músico Chai Bathana dedilhar algumas melodias em um violão durante sessenta minutos - que, na verdade, parecem durar muito mais. Resta, enfim, o tédio, que meu cansaço após um longo dia só fez aumentar. 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012


[festival do rio 2012 - parte 2]


Moonrise Kingdom  
Moonrise Kingdom, 2012
Wes Anderson


Personagens melancólicos e monossilábicos enquadrados de maneira centralizada pela câmera já são uma dica de que se está diante de um filme de Wes Anderson. O diretor, quem vem da experiência de filmar uma história mais voltada para o público infantil (O Fantástico Sr. Raposo), permanece nesse universo em Moonrise Kingdom, ao trazer a história de um casal de crianças vivendo um inocente e doce, mas intenso, amor. O maior mérito de Anderson e de seu co-roteirista Roman Coppola é levar esses personagens mirins muito a sério: a história é contada sob a ótica deles, mas nunca de uma maneira infantilizada por conta da baixa idade dos protagonistas. E o fato de ter dois atores magistrais interpretando os pequenos Sam e Suzy (Jared Gilman e Kara Hayward que, de tão bons, conseguem eclipsar a presença de nomes como Bruce Willis, Edward Norton, Bill Murray, Harvey Keitel, Tilda Swinton e Frances McDormand) torna tudo ainda mais marcante. A paixão com que seus respectivos personagens se dedicam um ao outro é algo comovente, elemento disparador de uma viagem sentimental às primeiras descobertas do amor, àquele primeiro momento em que nos sentimos abalados por simplesmente estar perto de alguém. Viagem muitíssimo bem conduzida por um inspirado, ainda que talvez repetitivo, Wes Anderson. 


As Sessões 
The Sessions, 2012
Ben Lewin


Num momento em que o superestimado Intocáveis arrebata as bilheterias brasileiras e consolida sua condição de favorito ao próximo Oscar de filme estrangeiro, não deixa de ser um alívio assistir a um filme delicado como esse As Sessões. Não que o trabalho de Ben Lewin seja radicalmente diferente do sucesso francês mas, só por não enveredar pelos caminhos da história edificante sobre uma amizade que supera todas as diferenças, já é digno de aplausos. O diretor equilibra bem o drama do protagonista com seu incorrigível bom humor, nunca descambando para a comédia explícita como faz Intocáveis, e ainda acerta em cheio na construção da relação entre o personagem de John Hawkes e a terapeura sexual interpretada por Helen Hunt. Os dois atores estão assombrosos em cena e o respeito e carinho com que se tratam ao longo da narrativa são de uma beleza gigantesca. 
Longe de ser uma obra-prima e se enquadrando, no fim das contas, à perfeição no cinema independente norte-americano "sério", As Sessões, ainda assim, conquista pela simplicidade de sua história e pela força de seu casal de protagonistas.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012


[festival do rio 2012 - parte 1]



Holy Motors 
Holy Motors, 2012
Leos Carax


Ao apresentar Holy Motors na sessão de gala do Festival do Rio, o cineasta Leos Carax classificou seu filme como muito simples, compreensível nem que seja após um breve período de digestão. Mesmo diante da bizarrice reinante na narrativa, que parece ter assustado muitos dos presentes no cinema, acredito que Carax tem certa razão: talvez seja possível "entender" Holy Motors.  
Esse é um filme, a meu ver, sobre a mentira - não necessariamente num sentido negativo - como base da representação cinematográfica. Afinal, o protagonista Oscar (que nome mais apropriado!) não passa de um ator que vive diferentes realidades ao longo do dia. Essencialmente um mentiroso, portanto, já que nenhum daqueles homens mostrados na tela é realmente ele, nenhuma daquelas historietas é de fato a história de sua vida. É da noção de farsa, de falsa realidade, que vive o cinema. É ela que permite aos filmes trabalhar com elementos fantásticos (mostrar carros falando, por exemplo) mas também produzir no espectador a ilusão de se estar vivendo o que é contado. 
Indo um pouco além, a mentira também embasa a vida fora das telas, as muitas máscaras que usamos no cotidiano (postura que se literaliza em Holy Motors, tanto na constante mutação sofrida por Oscar quanto na ação final da personagem da motorista). Para Carax, viver e narrar (fazer cinema) são faces da mesma moeda, do mesmo olhar mentiroso/representacional para o mundo. 
É preciso reconhecer que talvez eu esteja apenas arranhando a superfície de Holy Motors com essa minha tentativa de compreender o que assisti. Mas, ainda assim, mesmo que meu olhar seja pouco aprofundado ou equivocado, permanece a experiência de um filme instigante, que provoca estranheza no espectador sem lançá-lo para fora da narrativa - na realidade, o movimento é inverso, quanto mais bizarros são os acontecimentos vistos na tela, mais presa àquele mundo fica a atenção do público, num resultado muito próximo ao alcançado por algumas obras de David Lynch, por exemplo. Um filme muito bem conduzido por seu diretor/roteirista e que traz no desempenho do protagonista Denis Lavant um dos mais impressionantes trabalhos de atuação dos últimos tempos. Certas coisas bastam para produzir amor por alguns filmes, tornando descartável a costumeira necessidade de compreender plenamente as histórias narradas por eles.