quinta-feira, 22 de junho de 2017

Ao Cair da Noite



Num determinado momento de Ao Cair da Noite, o protagonista Paul (Joel Edgerton) revela que, antes de ter sua vida mudada radicalmente por uma estranha doença que parece ter acometido a humanidade, trabalhava como professor de História. “Se quiser saber tudo sobre o Império Romano, é comigo que você deve falar”, diz ele ao interlocutor Will (Christopher Abott). Anteriormente, em rápida cena de apresentação do ambiente no qual a história do filme se desenrola, a câmera do diretor Trey Edward Shults passeia pelos cômodos da casa de Paul, até encontrar, numa parede, o quadro “O Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel, que tem como tema a Peste Negra.

Essas duas passagens formam uma chave importante para entrar em Ao Cair da Noite e compreender a discussão subjacente a sua narrativa de horror. Aos poucos, Shults questiona a natureza da ameaça externa existente e, consequentemente, a sanidade de seus personagens. Conforme a narrativa avança, torna-se cada vez mais evidente a inexistência de um inimigo possivelmente sobrenatural – insinuado sobretudo nos terríveis pesadelos do personagem Travis (Kelvin Harrison Jr.) –, enquanto os sintomas da tal doença se assemelham bastante ao da peste bubônica, ressignificando, assim, a referência anterior à pandemia medieval, tornando-a central para o entendimento do filme.

Shults filma Ao Cair da Noite destacando o contraste entre luz e sombra, frequentemente mirando sua câmera para ambientes vazios nos quais entidades invisíveis parecem se esconder (há repetidos zooms lentos em direção a esses ambientes) e utilizando trilha sonora de acordes metálicos dissonantes, que provocam estranhamento e incômodo. Tais características ecoam esteticamente o excelente A Bruxa (2015), de Robert Eggers, mas a aproximação também se dá na presença de certos motivos na trama: o patriarca paranoico que aterroriza sua família e a própria floresta como espaço do horror, por exemplo.  

Ao Cair da Noite e A Bruxa se afastam, no entanto, em suas respectivas discussões centrais. Enquanto Eggers foca na questão da descoberta e liberação sexual feminina, Shults se interessa por, através da apresentação de paranoias alimentadas no mundo contemporâneo, colocar em dúvida a ideia de progresso linear da humanidade. Vive-se, hoje, um surto reativo de ignorância estimulado em grande parte pelas redes sociais, do qual é exemplo perfeito o crescimento de grupos de pais contrários à vacinação dos filhos. Nesse contexto, o que aconteceria se uma doença semelhante à Peste Negra começasse a se espalhar? As populações recorreriam aos seus médicos e a antibióticos recomendados por eles ou fugiriam para regiões remotas, construindo novas vidas em isolamento e paranoia extremos, evitando assim, na prática, o combate à própria doença?

É bastante generalizado o uso do termo medieval como um adjetivo pejorativo, sinônimo de atraso histórico superado pelo advento da modernidade. Há aí, claro, uma grande injustiça com a Idade Média, período complexo e multifacetado como qualquer outro da história, marcado, também, por importantes avanços tecnológicos e no pensamento, além de valorização desmedida e ingênua dos tempos modernos – o mesmo século XX que produziu os antibióticos, responsáveis por tornar a peste bubônica, outrora devastadora, um inimigo derrotável, produziu a barbárie das duas grandes guerras, por exemplo. Ao Cair da Noite é brilhante na maneira como discute essa possibilidade regressiva do homem sem gritar a todo momento que o está fazendo, utilizando muitíssimo bem a capa do cinema de horror.

Não que haja qualquer mérito per se na falsa filiação a um gênero talvez ainda tido como pouco nobre, ou na tendência a buscar tornar mais nobres os exemplares recentes desse gênero, por meio da aproximação com valores estéticos do cinema dramático independente americano – algo que, de certa forma, Shults e Eggers fazem. O ponto é que Ao Cair da Noite e A Bruxa conseguem, com considerável competência, talvez o segundo um pouco mais, ser as duas coisas ao mesmo tempo: filmes de horror assustadores, opressivos, incômodos, e dramas humanos densos, que tratam de questões socioculturais e históricas sofisticadas.


Ao Cair da Noite 
It Comes at Night, 2017
Trey Edward Shults




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