Num determinado momento de Ao Cair da Noite, o protagonista Paul
(Joel Edgerton) revela que, antes de ter sua vida mudada radicalmente por uma
estranha doença que parece ter acometido a humanidade, trabalhava como
professor de História. “Se quiser saber tudo sobre o Império Romano, é comigo
que você deve falar”, diz ele ao interlocutor Will (Christopher Abott).
Anteriormente, em rápida cena de apresentação do ambiente no qual a história do
filme se desenrola, a câmera do diretor Trey Edward Shults passeia pelos cômodos
da casa de Paul, até encontrar, numa parede, o quadro “O Triunfo da Morte”, de
Pieter Bruegel, que tem como tema a Peste Negra.
Essas duas passagens formam uma
chave importante para entrar em Ao Cair
da Noite e compreender a discussão subjacente a sua narrativa de horror. Aos
poucos, Shults questiona a natureza da ameaça externa existente e, consequentemente,
a sanidade de seus personagens. Conforme a narrativa avança, torna-se cada vez mais
evidente a inexistência de um inimigo possivelmente sobrenatural – insinuado
sobretudo nos terríveis pesadelos do personagem Travis (Kelvin Harrison Jr.) –,
enquanto os sintomas da tal doença se assemelham bastante ao da peste bubônica,
ressignificando, assim, a referência anterior à pandemia medieval, tornando-a
central para o entendimento do filme.
Shults filma Ao Cair da Noite destacando o contraste entre luz e sombra,
frequentemente mirando sua câmera para ambientes vazios nos quais entidades
invisíveis parecem se esconder (há repetidos zooms lentos em direção a esses ambientes) e utilizando trilha
sonora de acordes metálicos dissonantes, que provocam estranhamento e incômodo.
Tais características ecoam esteticamente o excelente A Bruxa (2015), de Robert Eggers, mas a aproximação também se dá na
presença de certos motivos na trama: o patriarca paranoico que aterroriza sua
família e a própria floresta como espaço do horror, por exemplo.
Ao Cair da Noite e A Bruxa
se afastam, no entanto, em suas respectivas discussões centrais. Enquanto
Eggers foca na questão da descoberta e liberação sexual feminina, Shults se
interessa por, através da apresentação de paranoias alimentadas no mundo contemporâneo,
colocar em dúvida a ideia de progresso linear da humanidade. Vive-se, hoje, um
surto reativo de ignorância estimulado em grande parte pelas redes sociais, do
qual é exemplo perfeito o crescimento de grupos de pais contrários à vacinação dos filhos.
Nesse contexto, o que aconteceria se uma doença semelhante à Peste Negra começasse
a se espalhar? As populações recorreriam aos seus médicos e a antibióticos
recomendados por eles ou fugiriam para regiões remotas, construindo novas vidas
em isolamento e paranoia extremos, evitando assim, na prática, o combate à
própria doença?
É bastante generalizado o uso do
termo medieval como um adjetivo
pejorativo, sinônimo de atraso histórico superado pelo advento da modernidade. Há
aí, claro, uma grande injustiça com a Idade Média, período complexo e
multifacetado como qualquer outro da história, marcado, também, por importantes
avanços tecnológicos e no pensamento, além de valorização desmedida e ingênua dos
tempos modernos – o mesmo século XX que produziu os antibióticos, responsáveis
por tornar a peste bubônica, outrora devastadora, um inimigo derrotável, produziu
a barbárie das duas grandes guerras, por exemplo. Ao Cair da Noite é brilhante na maneira como discute essa
possibilidade regressiva do homem sem gritar a todo momento que o está fazendo,
utilizando muitíssimo bem a capa do cinema de horror.
Não que haja qualquer mérito per se na falsa filiação a um gênero talvez
ainda tido como pouco nobre, ou na tendência
a buscar tornar mais nobres os
exemplares recentes desse gênero, por meio da aproximação com valores estéticos
do cinema dramático independente americano – algo que, de certa forma, Shults e
Eggers fazem. O ponto é que Ao Cair da
Noite e A Bruxa conseguem, com
considerável competência, talvez o segundo um pouco mais, ser as duas coisas ao
mesmo tempo: filmes de horror assustadores, opressivos, incômodos, e dramas
humanos densos, que tratam de questões socioculturais e históricas sofisticadas.
It Comes at Night, 2017
Trey Edward Shults
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