segunda-feira, 29 de agosto de 2011


[farrapo humano, vício maldito e o alcoolismo no cinema]


Tenho hoje uma postura bastante liberal com relação ao consumo de bebidas alcoólicas (e de drogas, em geral), mas convivi em minha infância com dois casos de alcoolismo na família que me deram a medida da gravidade dessa doença. No cinema, o devastador Despedida em Las Vegas, de Mike Figgis, se tornou para mim, há algum tempo, o filme-referência no assunto. Posto que pode ser agora dividido, tranquilamente, com duas outras obras: Farrapo Humano e Vício Maldito (filmes que, curiosamente, receberam títulos no Brasil que, apesar de fiéis à temática que abordam, estragam completamente a sutileza dos originais The Lost Weekend e Days of Wine and Roses).
O primeiro é um melodrama poderoso do grande Billy Wilder, que, alicerçado sobre o fabuloso desempenho de Ray Milland, acompanha a descida ao inferno de seu protagonista com uma pujança que impressiona - vale dizer, 50 anos antes de Despedida em Las Vegas. Farrapo Humano é um filme bastante amargo, carregado de tristeza no retrato que faz de seu personagem central - um escritor frustrado que se entrega sem pudores ao álcool. Jane Wyman interpreta sua namorada e "anjo da guarda", que tenta a todo custo salvá-lo da degradação física e moral que vive, e há algumas cenas comoventes com o casal. Mas é mesmo Milland quem causa arrepios, em sequências perturbadoras como a do delírio dentro de casa e a caminhada desesperada por Nova York em busca de um trago.
Já em Vício Maldito, saímos do campo do melodrama tradicional para entrarmos num drama mais complexo, com personagens multifacetados. Dirigido pelo também grande (mas não tanto quanto Wilder) Blake Edwards, é um filme que demora um pouco a explicitar em sua narrativa o tema do alcoolismo: há uma grande preocupação em apresentar o envolvimento gradual de seu casal de protagonistas e como a bebida vai, aos poucos, entrando em suas vidas. Mas quando Edwards enfim mergulha no vício dos personagens de Jack Lemmon e Lee Remick, o resultado é um punhado de momentos memoráveis (a cena da estufa, o confronto no motel, a dolorosa sequência final). Lemmon é um monstro em cena, mas Remick é tão fundamental quanto ele para o êxito de Vício Maldito. Juntos, os dois protagonizam uma das mais tristes histórias de amor que o cinema já contou.



Farrapo Humano  
The Lost Weekend, 1945
Billy Wilder

Vício Maldito 
Days of Wine and Roses, 1962
Blake Edwards

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Biutiful



Apesar de Alejandro González Iñárritu continuar mantendo uma relação de certo sadismo com seus personagens, o fim de sua parceria com Guilllermo Arriaga lhe fez muito bem. Biutiful, primeiro trabalho de Iñárritu pós-divórcio com seu roteirista de Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, é um filme que, para começar, já tem um mérito gigantesco: não ser estruturado sobre histórias paralelas que, em algum momento, se cruzam. É muito bom ver o diretor concentrando suas energias em contar a história de apenas um protagonista, despejando em sua trajetória toda a visceralidade de seu cinema.

É verdade que grande parte do êxito de Biutiful se deve à presença assombrosa de Javier Bardem em cena - seu personagem, dotado de um misto de brutalidade e fragilidade, agressividade e ternura, é o retrato de um homem destroçado pela vida, e o ator compõe essa figura de forma econômica, evitando qualquer traço de exagero que pudesse descambar para o melodrama (Bardem é, aliás, nesse sentido bem mais cuidadoso nos caminhos dramáticos que trilha do que o próprio Iñárritu), tirando desse cuidado com o mínimo a força gigantesca de seu desempenho. Mas há de se dar os devidos créditos ao diretor, que consegue controlar seus impulsos megalomaníacos, sua vontade de mostrar o quanto pode ser "genial", para simplesmente contar uma bela e forte história - por mais que ele às vezes chegue perto de perder esse controle, como ao dar excessivo destaque à história dos comerciantes chineses (mais um pouquinho ali e teríamos duas grandes narrativas se cruzando, como nos velhos tempos...), ou ao retornar, desnecessariamente, a uma das cenas iniciais para encerrar o filme (subestimando a capacidade do espectador de entender, com o desenrolar da trama, quem era aquele jovem que surgira no início dialogando com o personagem de Bardem).

No final, porém, o saldo é mesmo positivo: Biutiful é um ótimo filme. Se Guillermo Arriaga não tivesse escrito também aquela obra-prima dirigida por Tommy Lee Jones chamada Três Enterros, talvez até fosse possível dizer que estava somente em Iñárritu o talento por trás dos trabalhos da dupla.


Biutiful 
Biutiful, 2010
Alejandro González Iñárritu

quinta-feira, 18 de agosto de 2011


[super 8]

Super 8
Super 8, 2011
J.J. Abrams


Filmes nostálgicos costumam ser pequenas pérolas. Ter J.J. Abrams dirigindo uma trama de suspense que remete diretamente a Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T. - O Extraterrestre e Os Goonies era praticamente certeza de "filme mais delicioso do ano". Mas, por algum motivo, Super 8 não consegue concretizar o que prometia, apesar de chegar bem perto disso.
O maior mérito de Abrams está no tratamento dado a seus protagonistas mirins. Assim como as crianças de Os Goonies e E.T., os pequenos de Super 8 são o motor do filme: adoráveis, espertos, donos de diálogos memoráveis, mas sempre crianças, nunca além disso. Elle Fanning é o inevitável destaque, mas Riley Griffiths e Joel Courtney também são descobertas preciosas feitas por Abrams. As relações entre esses personagens e deles com suas respectivas famílias tornam Super 8 um filme emocionalmente cativante - e mesmo doloroso, no caso do personagem de Courtney. O diretor traz, no melhor estilo Spielberg, a família para o centro de uma trama de mistério e ficção-científica, e torna tudo muito mais emocionante. Talvez seja preciso ter crescido assistindo E.T. para se emocionar com a cena final do cordão, não sei. Em mim, funcionou muito bem.
O que atrapalha Super 8 e o impede de se tornar memorável é o tal mistério em si. Tomando Spielberg como base, Abrams poderia seguir Tubarão, e esconder seu monstro o máximo possível, fazendo dele um vilão abominável quando finalmente surgisse na tela, ou E.T., mostrando o alienígena a todo tempo, humanizando-o e tornando os humanos (adultos, claro) os verdadeiros vilões da história. No entanto, o diretor parece querer fazer as duas coisas, e aí seu filme sai dos trilhos (não, isso não foi um trocadilho). A ameaça que demoramos a ver cria uma expectativa que é frustrada quando, enfim diante de nossos olhos, o monstro de Super 8 passa por um não muito bem-sucedido processo de humanização. Não nos importamos suficientemente com ele, e nem o tememos como talvez devêssemos temê-lo.

domingo, 14 de agosto de 2011


[capitão américa: o primeiro vingador]

Capitão América: O Primeiro Vingador
Captain America: First Avenger, 2011
Joe Johnston


Apesar de ter uma vaga, e negativa, lembrança de ter assistido em minha infância o desastroso filme do Capitão América lançado no início da década de 1990, mantinha, há algum tempo, o interesse em reencontrar o personagem em uma grande produção, com qualidade técnica e narrativa, e elenco respeitável. Capitão América: O Primeiro Vingador é, ou deveria ser, a concretização desse interesse. Mas Joe Johnston ficou no meio do caminho - é o que dá contratar um cineasta apenas razoável para comandar um filme que poderia, dentro de suas limitações, ser ótimo.
O filme, na verdade, tem alguns acertos. O maior deles é ser fiel à origem do personagem, mantendo-o na década de 1940, no contexto da Segunda Guerra Mundial - é um momento em que fica muito mais fácil se identificar com um herói que carrega em seu uniforme a bandeira dos Estados Unidos, e o roteiro ainda brinca de maneira criativa com isso, justificando através da propaganda de guerra a escolha por tal uniforme (naquelas que são, provavelmente, as melhores cenas do filme). Toda a construção da narrativa em torno do surgimento do Capitão América, da obstinação do franzino Steve Rogers até sua entrada na guerra, é construída com a calma necessária - o que é muito bom -, mas entra aí aquele que é um problema cada vez mais comum em "filmes de origem" como esse: se tem-se um roteiro que se dedica a apresentar cada pormenor que justifica a existência do herói, tem-se, por outro lado, uma estranha dificuldade em criar uma trama minimamente interessante, com um vilão minimamente memorável. O Caveira Vermelha de Hugo Weaving é insosso, mas nem é culpa do ator. O roteiro de Capitão América: O Primeiro Vingador parece sabotar o personagem a todo momento, dotando-o de planos megalomaníacos difíceis de entender e que beiram o patético. Daí me pergunto: não seria simplesmente melhor deixar um vilão como esse (que é o maior inimigo do Capitão América) para uma possível sequência, e investir em antagonistas mais genéricos, que exigissem, pela sua natureza (genérica) um menor desenvolvimento dramático? Por que não, por exemplo, brincar ainda mais com o contexto da guerra e com a História, deixando simplesmente os nazistas como vilões (difícil não tomar como exemplo Os Caçadores da Arca Perdida, filme do qual, aliás, Capitão América parece desejar se aproximar, em determinados momentos)? E principalmente: por que submeter tanto os filmes da Marvel ao futuro longa dos tais Vingadores? Este terá de ser muito bom para justificar tantas oportunidades perdidas...

segunda-feira, 8 de agosto de 2011


[jackie brown]

Jackie Brown
Jackie Brown, 1997
Quentin Tarantino


Não é difícil encontrar quem considere Jackie Brown um filme menor de Quentin Tarantino. Diante da explosão de violência e cultura pop de Cães de Aluguel e Pulp Fiction, talvez o terceiro longa do diretor soe enfadonho, com seus diálogos longos e trama quase totalmente linear. É difícil, num primeiro momento, enxergar aqui a genialidade de seus dois filmes anteriores. Injustiça, das grandes - Jackie Brown é uma preciosidade a ser descoberta.
Sempre me encantou no cinema de Tarantino - dentre outras milhares de coisas - a calma com que o diretor conduz suas tramas. A atmosfera cool que envolve os personagens de Pulp Fiction, por exemplo, parece se estender para o ofício do próprio cineasta, que, em ritmo relaxado (mas nunca desleixado, sempre perfeccionista ao extremo), move seu filme adiante. E Jackie Brown talvez seja a obra em que essa característica fica mais evidente. Tarantino radicaliza a opção de inserir afazeres e diálogos cotidianos nas vidas de seus personagens (algo que já ocorrera de forma memorável em seus dois longas anteriores), desglamourizando totalmente tanto criminosos (como aqueles interpretados maravilhosamente por Samuel L. Jackson e Robert De Niro) quanto homens da lei (os personagens de Robert Forster e Michael Keaton, por exemplo). Desglamouriza, em certo sentido, seu próprio cinema. E compõe, a partir daí, um retrato meio-amargo de uma Los Angeles que, apesar de ensolarada, nada tem de "cidade dos sonhos".
Jackie Brown é o atestado de maturidade de Tarantino enquanto diretor de cinema (sua mise-en-scéne é primorosa), por mais que não seja seu melhor filme (mas nem está tão longe disso). Maturidade que se materializa, na trama, no relacionamento entre os personagens de Pam Grier e Robert Forster: dois adultos, castigados pela vida, que se interessam um pelo outro, sem grandes arroubos de loucura e paixão - e sem necessariamente concretizarem esse interesse. Quem esperaria de Quentin Tarantino uma das mais singelas e verdadeiras histórias de amor do cinema americano da década de 1990?