quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O Filho de Saul



No livro É isto um homem?, Primo Levi narrou o processo de desumanização sofrido pelos prisioneiros de campos de concentração e extermínio durante a Segunda Guerra Mundial (o próprio escritor italiano foi uma dessas vítimas): primeiramente, lhes eram tirados seus pertences, depois, seus nomes (passavam a ser reconhecidos por números), e, em seguida, na luta desesperada por sobrevivência, eram levados a cometer atos atrozes. Alguns deles inclusive tomaram parte no assassinato de seus iguais: foi o caso dos kapos e dos sonderkommandos, judeus colocados pelos nazistas em posições de poder sobre outros prisioneiros, vigiando-os, punindo-os e mesmo conduzindo-os à morte nas câmaras de gás.

Depois do impressionante e incontornável documentário Shoah (1985), de Claude Lanzmann, O Filho de Saul é provavelmente o filme que melhor se aproxima desse relato do horror vivido por Levi. Seu protagonista, Saul Ausländer (Géza Röhrig), é um sonderkommando, o que, de partida, já diferencia a estreia na direção de László Nemes da enxurrada de filmes sobre o Holocausto produzidos por aí. Não foram muitas as vezes em que o cinema destacou, na máquina de extermínio alemã, personagens nessa posição, judeus que, vítimas, exerciam também o papel de algozes (na ficção, me lembro de apenas um caso relevante, o dramalhão Kapò, de Gillo Pontecorvo). Saul leva prisioneiros até a câmara de gás, recolhe as roupas deixadas por eles e despacha seus cadáveres para os fornos crematórios. Não questiona o trabalho que é levado a realizar, nem olha para os lados. Não busca ver a imagem completa do horror em que está inserido. Não enxergar esse todo significa manter algum grau de sanidade, necessária para a realização de um ofício que garante sua sobrevivência até o fim de cada dia. Nesse sentido, a opção de Nemes por manter a câmera sempre próxima ao protagonista, com reduzidíssima profundidade de campo e desfocando tudo que o cerca, coloca o espectador na mesma posição ético-moral de Saul.

Ao mesmo tempo, isso parece ter relação com todo um debate desenvolvido, há algumas décadas, sobre a possibilidade de representação do Holocausto nas artes. Se Lanzmann, em Shoah, escolheu não encenar, apenas colher depoimentos (gerando um filme de mais de nove horas de relatos aterradores), Nemes deixa a morte fora de foco, os cadáveres sem rosto, e não ousa entrar na câmara de gás junto aos prisioneiros como fez Spielberg em A Lista de Schindler. Ainda assim, muito mais que em Schindler ou O Pianista, e menos talvez apenas que em Shoah, a morte está absolutamente presente em O Filho de Saul. Presente não só como uma ameaça constante aos personagens que aparecem na tela (“já estamos todos mortos”, diz Saul em certo momento, o que permitiria inferir que o campo de extermínio é o inferno), mas como um estado perpétuo que rege suas existências. O Filho de Saul cheira a morte, como provavelmente não se sentia num filme desde Vá e Veja (1985), de Elem Klimov.

Em meio ao horror absoluto, Saul se agarra ao desejo de enterrar o cadáver de seu suposto filho, descoberto em meio às vítimas do gás, de acordo com os rituais judaicos. É o fio de humanidade, de dignidade, de civilidade que lhe resta, diante da barbárie. É sua arma contra a desumanização completa, mais potente que as armas de fogo tão necessárias a seus companheiros de prisão para iniciarem uma revolta, condenada ao fracasso, contra os alemães. Pois se trata, aí, não só de derrotar o inimigo para continuar vivendo, mas de continuar sendo homem por meio da permanência de laços afetivos e culturais.


O Filho de Saul 
Saul Fia, 2015
László Nemes

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Carol



A princípio, Carol parece um retorno de Todd Haynes ao cinema de Douglas Sirk, pouco mais de uma década depois do belo Longe do Paraíso. Como em seu filme de 2002 com Julianne Moore, e como em muitos exemplares do cinema do diretor alemão radicado em Hollywood, tem-se aqui como cenário os subúrbios de uma grande cidade norte-americana (no caso, Nova York) nos anos 50. Década de prosperidade econômica e pujança do famigerado american way of life, tão perfeitamente encarnado pelas famílias de classe média que interessam a Sirk e Haynes. Os dois diretores partem dessa placidez aparentemente absoluta para encontrar o que há de sufocado nesse mundo. Não num sentido cínico, à lá Lars von Trier, mas por compreenderem que uma sociedade só se sustenta como supostamente perfeita quando suprime desejos de alguns, talvez muitos, de seus indivíduos.

Mas Carol se afasta de Sirk quando Haynes, ao invés de se filiar ao melodrama mais escancarado e carregado de cores de filmes como Tudo que o Céu Permite (1955) e Imitação da Vida (1959), opta por um visual mais realista e uma exposição mais sutil dos dramas de suas protagonistas, duas mulheres (uma delas em processo de divórcio do marido) que se conhecem, se desejam e se amam – a consumação desse amor encontra barreiras tanto no conservadorismo de seu tempo, na standardização da vida na América dos anos 50, quanto nas responsabilidades familiares que se impõem (ou são impostas) a uma delas. A temática do amor homossexual impossível de se realizar remete a O Segredo de Brokeback Mountain (2005), mas o devastador filme de Ang Lee, muito pelo universo bronco de seus personagens, buscava mergulhar numa lógica da força bruta que não existe em Carol. Ao invés da fisicalidade presente no amor de Jack Twist e Ennis Del Mar, Haynes aposta em pequenos gestos: um toque carinhoso no ombro aqui, um olhar prolongado que precede um discretíssimo “eu te amo” ali, que, numa sociedade formatada como a que vivem Carol (Cate Blanchett) e Therese (Rooney Mara), representam verdadeiras explosões de afeto.

Aparece então como principal diálogo cinematográfico de Carol – na estrutura narrativa, na delicadeza do desenvolvimento de uma relação amorosa clandestina cuja realização plena se choca com obrigações familiares impostas a um dos personagens e mesmo na citação ao tal toque carinhoso no ombro que marca um momento de dolorosa despedida, repetido no início e no fim de cada filme – a obra-prima Desencanto (1945), de David Lean. Trata-se de um pequeno e delicadíssimo filme de amor, pouco lembrado numa carreira marcada por obras grandiosas como A Ponte do Rio Kwai (1957), Lawrence da Arábia (1962), Dr. Jivago (1965) e A Filha de Ryan (1972) – esses dois últimos, por sinal, também histórias de amor um tanto tristes, como Desencanto e Carol. Saindo de Sirk e chegando em Lean, o cinema de Todd Haynes continua se erguendo sobre os ombros de gigantes.  


Carol 
Carol, 2015
Todd Haynes