segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O Impossível



Muita gente morre nos filmes-catástrofe. Não os protagonistas, claro, mas há sempre um bando de figurantes, reais ou digitais, prontos para serem aniquilados sem que o espectador se preocupe realmente com eles. Os exemplares provenientes da escola Roland Emmerich/Michael Bay de fazer cinema estão cheios de casos assim, que acabam privando tais filmes de um sentido mais profundo de solidariedade humana - o que importa é o espetáculo, o entretenimento e a sensação final de que estamos vivos com aqueles que mereceram viver. Felizmente, o cineasta espanhol Juan Antonio Bayona seguiu outro caminho em O Impossível, seu segundo longa-metragem (o primeiro foi o tenso O Orfanato), que trata da luta por sobrevivência de uma família inglesa em meio ao tsunami que assolou parte da Ásia no final de 2004.

Clint Eastwood abriu seu belo Além da Vida (2010) justamente com esse desastre natural, usando-o, no entanto, meramente como motivador para uma virada nas crenças da personagem de Cecile de France - que, após passar por uma experiência de quase-morte ao ser atingida pela onda gigante, reencontrava seu marido em meio à destruição deixada e passava a investigar as possibilidades de comunicação dos vivos com os mortos. A rigor, o que Bayona faz em O Impossível é explorar o que existe entre o desastre e o reencontro, optando pela via do cinema-catástrofe com olhar humano. Se a proximidade com Além da Vida se restringe à presença em cena do tsunami de 2004, a semelhança com os filmes de Emmerich ou Bay é menor ainda.

O diretor aposta em personagens simples e de fácil identificação para qualquer espectador, num elenco sólido (Naomi Watts, Ewan McGregor e o garoto Tom Holland estão ótimos!) e numa narrativa dramática que não tem medo de flertar com o melodrama, subindo o tom desavergonhadamente quando busca emoções mais fortes. É um filme-catástrofe de pegada mais clássica, belíssimo, como não se via, talvez, desde Titanic, o que não é pouco. Bayona cria uma experiência dramática intensa que faz com que o alívio e a comoção pela sobrevivência dos protagonistas sejam acompanhados por uma espécie de lamento silencioso pelas vidas perdidas naquela tragédia.


O Impossível 
The Impossible, 2012
Juan Antonio Bayona

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Sobre cinema e religião



Uma onda religiosa aponta no horizonte do cinema contemporâneo. Obras como Além da Vida, de Clint Eastwood, A Árvore da Vida, de Terrence Malick e esse novo As Aventuras de Pi, de Ang Lee, convergem para essa ânsia de discutir as relações do homem com Deus, no caso dos dois últimos, e com a vida após a morte, no caso do primeiro. No Brasil, entretanto, a moda é o filme espírita, materialização cinematográfica dos preceitos da religião fundada por Allan Kardec no século XIX, cinema de pregação.

Depois do êxito surpresa do pequeno Bezerra de Menezes e das grandes produções Chico Xavier e Nosso Lar, o mercado do cinema espírita parece consolidado, com o lançamento de pelo menos um representante por ano. O grande problema é que esses filmes, com exceção da boa cinebiografia de Chico Xavier dirigida por Daniel Filho, estão primordialmente à serviço de uma religião institucionalizada. Importa menos contar uma boa história do que divulgar os princípios dessa religião e é claro que quem paga o preço é o bom cinema. O sujeito pode ser um cineasta de fundo de quintal, sem o menor tino para o ofício mas, se produz um filme que se enquadra num nicho de mercado forte como esse, consegue ser lançado nos cinemas, ocupando um espaço que poderia ser de alguma obra mais relevante. É o caso de E a Vida Continua... que, apesar de contar com uma ou outra cara conhecida do público de novelas - e com a inexplicável presença de Lima Duarte -, assusta pela falta de qualidade em todos os quesitos imagináveis num filme. Texto sofrível, atuações nível teatro da escola da esquina e um diretor que não sabe o que fazer com sua câmera marcam E a Vida Continua.... Mas, no fim das contas, o que importa tudo isso, se a mensagem religiosa foi disseminada, agradando ao público espírita, e algum dinheiro foi arrecadado, deixando felizes os produtores?


As Aventuras de Pi, novo trabalho de Ang Lee, é um bom contraponto a esse cinema religioso brasileiro. A busca por algo maior que explique a existência humana está presente em todo o filme, bem como um discurso de certa positivação do sentimento religioso, mas o diretor taiwanês não está à serviço de nenhum crença institucionalizada. As Aventuras de Pi fala de nossa necessidade, enquanto espécie, de encontrar sentido na vida, estruturando-a como uma narrativa (por vezes fantástica), com início, meio e fim e dotada de uma moral explicativa. Trata-se de um filme fascinando pelo poder da crença humana em algo superior e pelos mecanismos que movem essa crença, mas que jamais se submete a qualquer discurso religioso específico, tornando-se de fácil identificação até para descrentes como eu.

Diante do ecletismo sem fim da filmografia de Ang Lee, o apuro técnico e a delicadeza para contar histórias aparecem como traços comuns a todos seus trabalhos atrás das câmeras e com As Aventuras de Pi não é diferente. Movendo-se com cuidado no território pantanoso do filme de amizade entre um ser humano e um animal, Lee constrói uma narrativa mágica em seu miolo e de uma inusitada complexidade em seu epílogo. Sem dogmatismos ou discursos inflamados, o diretor apresenta a religiosidade como uma faceta incontornável e bela da humanidade, mas não como o único caminho possível para ela. E, o que é mais importante em se tratando de cinema, faz um grande filme.


E a Vida Continua... 
E a Vida Continua..., 2012
Paulo Figueiredo

As Aventuras de Pi 
The Life of Pi, 2012
Ang Lee

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Lá e de volta outra vez



Quanto valem dez anos? Uma vida de cinefilia construída - com muitas lacunas - a partir do encantamento diante de um simples filme se reencontra agora com o universo responsável por seu início, através das versões estendidas das três partes de O Senhor dos Anéis e do lançamento nos cinemas de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada.

O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, assistido no dia 1 de janeiro de 2002, redefiniu meus gostos para cinema: de espectador ocasional de blockbusters norte-americanos, passei a interessado no fazer cinematográfico, na história dessa arte e, claro, nos mais diversos tipos de filmes. E tudo por causa do maldito Peter Jackson e sua belíssima trilogia. Só consigo precisar o que tanto me encantara no trabalho de Jackson ao revê-lo mais uma vez: sua capacidade de conduzir com firmeza uma história tão longa, tão cheia de personagens e paisagens, quase um road movie mitológico; o irresistível senso de aventura que permeia a jornada de Frodo e Sam à Montanha da Perdição, sem jamais perder de vista os riscos que os personagens correm, a chance real de fracasso em sua missão (a morte de Boromir, um dos componentes da sociedade do anel, nesse primeiro filme, acentua a sensação de que nenhum daqueles sujeitos que aprendemos a amar está realmente seguro); mas, sobretudo, o cuidado no desenvolvimento dos personagens, a noção exata do equilíbrio entre a grandiosidade da trama e dos cenários e os dramas individuais de cada figura que surge na tela. Havia em A Sociedade do Anel uma estranha sensação de trabalho artesanal, mesmo com a presença massiva de efeitos especiais - sensação que, em boa medida, se estende aos dois filmes seguintes, As Duas Torres e O Retorno do Rei, ainda que diminuída pelo aumento considerável da escala de suas respectivas narrativas.

As versões estendidas acabam realçando, involuntariamente, outro mérito de Jackson: seu belo trabalho no corte de O Senhor dos Anéis, montando uma obra coesa como um todo e em cada uma de suas partes, sem sobras e sem deixar de fora algo que realmente faça falta. É claro que, para o aficcionado pelo universo de Tolkien, certas sequências são um prazer à parte: os presentes de Galadriel em A Sociedade do Anel, o flashback com Boromir e Faramir em As Duas Torres, o fim de Saruman e o confronto entre Gandalf e o Rei Bruxo de Angmar em O Retorno do Rei, por exemplo, são momentos que poderiam (e talvez até deveriam) entrar nas versões que foram para os cinemas no início da década passada. No entanto, parece inegável que, sem eles, os três filmes continuam a funcionar magnificamente, enquanto há muitas outras cenas e sequências presentes nas versões estendidas que mereceram ser deixadas de lado na sala de montagem (as tentativas de fazer graça com Gimli na passagem das Sendas dos Mortos em O Retorno do Rei, por exemplo, são de gosto um tanto duvidoso).


É curioso notar, por isso, que O Hobbit: Uma Jornada Inesperada falhe justamente em alguns dos pontos que tornaram O Senhor dos Anéis tão bom. Em primeiro lugar, há um problema que parece ter sido criado exclusivamente pela megalomania de Peter Jackson: a decisão de transformar o livro O Hobbit, de Tolkien, que não chega a ter 300 páginas, em três longos filmes. O material original traz uma história um tanto simples, com um clima bem mais leve que o de O Senhor dos Anéis, e que poderia ser contada, sem grandes problemas, num longa de três horas de duração. Mas como o Peter Jackson pós-O Retorno do Rei é um cineasta com imensa dificuldade de cortar gorduras de seus filmes (vide King Kong e Um Olhar do Paraíso) - e como os executivos da Warner, da New Line e da MGM devem estar alucinados com a possibilidade de faturar montanhas de dinheiro com uma nova trilogia passada na Terra-Média -, cá estamos diante do primeiro terço de "O Hobbit".

Outro pecado do filme está no desequilíbrio entre o tom excessivamente grandioso de sua narrativa e o pouco cuidado demonstrado com seus personagens. Jackson parece acreditar que basta trazer de volta figuras facilmente identificáveis pelo público para garantir o envolvimento emocional deste (afinal, como resistir ao Gandalf de Ian McKellen ou ao Gollum de Andy Serkis?), o que não é verdade. Como muitos já vêm apontando, os anões de O Hobbit são um problema por sua falta de personalidade própria (exceção feita ao magnético Thorin Escudo de Carvalho, interpretado por Richard Armitage), o que em nada lembra a competência com que o diretor marcou as características de cada membro da sociedade do anel em O Senhor dos Anéis. Assim, sobram no filme paisagens deslumbrantes e grandes sequências de ação, mas faltam personagens verdadeiramente memoráveis; a sensação de trabalho artesanal, tão forte na trilogia original, aparece pouco aqui.

Como fã do universo de Tolkien, e também pelo fato de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada ser, no fim das contas, um bom filme, tomo esse reencontro com Peter Jackson e a Terra-Média, pouco mais de dez anos depois de ter assistido ao primeiro O Senhor dos Anéis e de ter começado a enxergar o cinema de outra forma, como positivo. Mas não sem uma pontinha de decepção.



O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel - Versão Estendida 
The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring - Extended Version, 2001
Peter Jackson

O Senhor dos Anéis: As Duas Torres - Versão Estendida 
The Lord of the Rings: The Two Towers - Extended Version, 2002
Peter Jackson

O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei - Versão Estendida 
The Lord of the Rings: The Return of the King - Extended Version, 2003
Peter Jackson

O Hobbit: Uma Jornada Inesperada 
The Hobbit: An Unexpected Journey, 2012
Peter Jackson

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O Homem da Máfia



O retrato ultraviolento e nada glamouroso das atividades mafiosas lembra um pouco o cinema de Scorsese, particularmente Os Bons Companheiros; os personagens conversando sobre assuntos que pouco se relacionam com o tema central da narrativa apresentada remetem aos filmes de Tarantino; no entanto, O Homem da Máfia, terceiro longa-metragem do cineasta neozelandês Andrew Dominik, é cheio de estilo próprio.

Depois de realizar o belíssimo O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, o diretor optou por um trabalho de tom bastante diverso: sai a contemplação quase existencialista daquele western, entra a urgência de um thriller urbano  pautado por um pungente comentário social sobre os efeitos da atual crise econômica nos Estados Unidos. Dominik consegue equilibrar com maestria seu olhar crítico para a sociedade americana com a tarefa de contar uma boa história, com personagens minimamente interessantes. Assim, ao mesmo tempo que as figuras interpretadas por Ray Liotta, James Gandolfini, Richard Jenkins, Scoot McNairy, Ben Mendelsohn e Brad Pitt despertam os mais diversos sentimentos no espectador (como não temer o personagem de Pitt e sentir pena do de Liotta, por exemplo?), que efetivamente se interessa por seus respectivos destinos, o impacto da crítica social feita por Dominik é avassalador.

Desde sua primeira cena, O Homem da Máfia é perpassado por discursos da campanha presidencial de 2008, especialmente aqueles proferidos pelo então candidato Barack Obama, que são constrastados com a realidade dura em que se passa a história narrada. O otimismo e o senso de comunidade presentes nas palavras do futuro presidente parecem ter pouco (ou nada) a ver com o individualismo, a ganância e a miséria que marcam a existência dos personagens do filme de Dominik, algo que se explicita de maneira radical no brilhante - e apavorante - diálogo travado por Pitt e Jenkins nos momentos finais de O Homem da Máfia. Está posto então diante de Obama, sem meias palavras, o imenso desafio que seira enfrentado pelos próximos quatro (agora oito) anos. É difícil não se compadecer do sujeito. 



O Homem da Máfia 
Killing them Softly, 2012
Andrew Dominik