domingo, 28 de junho de 2009

[jean charles]

Jean Charles
Jean Charles, 2009
Henrique Goldman


Me parece que, ao filmar a história do brasileiro Jean Charles de Menezes, confundido com um terrorista e morto covardemente pela polícia inglesa em 2005, o diretor Henrique Goldman teria duas opções de foco narrativo: ou construía um thriller político, um filme-denúncia contra a atitude dos policiais ingleses e a não-punição destes até os dias de hoje (lá se vão 4 anos desde o ocorrido...), ou buscava um lado mais humano na história, indo além da biografia do personagem-título e focando no cotidiano dos imigrantes brasileiros em Londres. Goldman optou pela segunda, e acertou em cheio.
Também um brasileiro habitante da capital inglesa, o diretor demonstra enorme desenvoltura ao filmar o dia-a-dia daquelas pessoas, criando um painel delicado, ao mesmo tempo melancólico e bem-humorado, das condições em que vivem. Selton Mello acaba também se revelando um grande acerto: o ator (reconhecidamente talentoso, mas sofrendo de uma certa superexposição no cinema brasileiro atual), consegue ir além de sua típica caracterização de personagens simpáticos e engraçados, fazendo de seu Jean Charles uma figura um tanto verdadeira, absurdamente carismática sem que sua presença soe forçada. Se se imaginava que a escolha do ator para o papel poderia torná-lo "maior" que o retratado, fazendo-nos esquecer do verdadeiro Jean Charles, o que acaba ocorrendo é justamente o contrário, com Selton se colocando em uma posição extremamente respeitosa, de certa forma deixando seu talento dramático à serviço daquela trágica história e daquele trágico homem (Jean Charles de Menezes e sua vida são, em Jean Charles, sempre maiores, mais importantes, do que a interpretação de Selton Mello). E vale dizer também que a presença sempre graciosa da apaixonante Vanessa Giácomo também ajuda, e muito, tanto o desempenho do protagonista (já que o casal exibe uma ótima química em cena) quanto o filme em geral.
No entanto, como era de se imaginar, Jean Charles possui lá seus problemas. Se na maior parte do tempo a narrativa flui muito bem, sem nenhum grande tropeço (por mais que algumas presenças de não-atores chegue a incomodar em alguns momentos), quando esta dá a grande guinada, com a saída de Selton de cena e a consequente mudança de tom (não havendo mais espaço para bom-humor), o filme cai ladeira abaixo. Primeiramente, a própria cena do assassinato de Jean Charles é mal filmada, com uma estranha e despropositada câmera subjetiva, que acaba diminuindo o impacto do ocorrido. E, em seguida, há uma série de cenas passadas no Brasil que são bastante ruins. Daniel de Oliveira faz uma desnecessária e boba participação especial, e Jean Charles aproxima-se de um incômodo tom melodramático (por mais que, na sequência da visita das autoridades inglesas à família da vítima, a reação do personagem do ótimo Luís Miranda acabe por soar verdadeiramente comovente). Felizmente, porém, o que fica no final, é a sensação de que Goldman obteve êxito, ao optar por um filme de pequena escala, nada inovador, mas profundamente sincero. Sem dúvidas, poderia ser melhor, mas as recentes experiências de nosso cinema com filmes biográficos mostra que também poderia ser pior. O saldo, portanto, é positivo.

terça-feira, 23 de junho de 2009

[garotos de programa]

Garotos de Programa
My Own Private Idaho, 1991
Gus Van Sant


Como se poderia desconfiar, vindo de alguém como Gus Van Sant, Garotos de Programa é muito mais do que seu pouco criativo título brasileiro tenta mostrar. É sim sobre garotos de programa "ganhando a vida", mas é principalmente um filme sobre a busca por um lugar no mundo (como, aliás, boa parte dos filmes do diretor), um mundo que simplesmente parece não te querer, a não ser para, de forma hipócrita, usufruir de seus dotes sexuais. E é também um filme de amor. E dos mais belos.
E não deixa de ser curioso, e triste, que os protagonistas de duas das mais belas histórias de amor homossexual que o cinema já produziu, River Phoenix e Heath Ledger, tenham morrido absurdamente jovens, e deixando justamente nesses filmes talvez a maior prova de seus gigantescos talentos. Assim como Ledger em Brokeback Mountain, Phoenix rouba a cena aqui. Por mais que Keanu Reeves tenha o mesmo destaque na narrativa, é do ator de Conta Comigo que vem o desempenho mais delicado e comovente, uma interpretação carregada de sutileza, na construção de um personagem insuportavelmente triste, mesmo em seus momentos de alegria. O Mike Waters de Phoenix é trágico a sua própria maneira, e me pergunto se a doença que carrega (narcolepsia) não representaria, ainda que ele não se dê conta disso, momentos de alívio para a dura realidade de sua vida - afinal, quando dorme, Mike sonha com uma infância feliz, com a presença de uma mãe carinhosa, algo que de fato não ocorreu.
Gus Van Sant é um sujeito que, claramente, se sai melhor quando mergulha em seu lado indie do que quando abraça um cinema mais "clássico" (ainda que Gênio Indomável e Milk sejam dois filmes que adoro), e Garotos de Programa, que foi seu terceiro longa-metragem, deixa essa característica bem ressaltada. É um filme nada convencional, onde Van Sant aposta em uma narrativa elíptica, em que tempo e espaço são atravessados pelos personagens sem que o espectador perceba isto com clareza (a não ser pelas chamadas com os nomes das cidades que aparecem na tela), em cenas inusitadas (me parece um toque de genialidade a maneira como o diretor filma as sequências de sexo) e em personagens que fogem de qualquer padrão de normalidade. E é curioso como isso se torna fundamental não só para o realce da marginalidade daquelas figuras, mas também para a identificação delas com quem assiste ao filme (e talvez o estranhíssimo e adorável Bob, vivido por William Richert, seja o melhor exemplo disso). E fica a dúvida se Garotos de Programa não seria, em certa medida, um elogio à marginalidade. Triste, melancólico, amargo. Mas ainda assim, um elogio. Em se tratando do cinema de Gus Van Sant, é bem possível que sim.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

[a festa da menina morta]

A Festa da Menina Morta
A Festa da Menina Morta, 2008
Matheus Nachtergaele



É sob grande influência do cinema feito por um grupo de realizadores nordestinos (Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Sérgio Machado, Marcelo Gomes, Karim Aïnouz) que Matheus Nachtergaele promove sua estreia na direção de longas com esse A Festa da Menina Morta. Falta, entretando, ao estreante, o talento narrativo e a força dramática que estes costumam imprimir a seus filmes: A Festa da Menina Morta é uma obra um tanto irregular, que tem uma excelente premissa que acaba sendo subaproveitada.
Em primeiro lugar, o filme depende excessivamente de seu protagonista, uma figura bizarra, interpretada com brilhantismo por Daniel de Oliveira. O ator está excepcional, naquele que talvez seja seu melhor desempenho desde Cazuza, a ponto de fazer com que um sujeito repugnante como Santinho (histérico, egoísta, egocêntrico) se torne absurdamente fascinante - vê-lo em cena é, ao mesmo tempo, um misto de sofrimento e prazer. No entanto, Nachtergaele parece hipnotizado em demasia pela interpretação de seu protagonista e acaba se esquecendo do resto do filme. Exagero meu, mas, de alguma forma, tudo parece estar pela metade em A Festa da Menina Morta. Algumas cenas são excessivamente gratuitas (confesso que a aparição da personagem de Cássia Kiss continua um enigma para mim), atores reconhecidamente talentosos são desperdiçados em personagens sem nenhuma expressão (além de Kiss, há Dira Paes num papel pequeno demais, sem nenhuma importância, e Paulo José fazendo sabe-se lá o quê), e questões que pareciam importantes para o desenrolar da história são simplesmente esquecidas a partir de certo momento - o exemplo mais significativo nesse sentido diz respeito ao personagem de Juliano Cazarré, portador de um elemento de conflito no filme, capaz de implodir toda aquela situação, mas que, sem nenhuma explicação, parece simplesmente deixar de lado suas angústias e inquietações (o que, a meu ver, é uma falha de Nachtergaele, que parece não saber como conduzir aquele conflito iminente, e decide por abandoná-lo).
Talvez possa-se argumentar uma opção do diretor por deixar coisas em aberto, por evitar respostas prontas, visões acabadas sobre a temática abordada - o que até faria um certo sentido, já que, por mais que seu olhar sobre a religiosidade daquelas pessoas seja altamente crítico, em determinados momentos, especialmente quando filma de maneira belíssima a festa da menina morta propriamente dita, Nachtergaele demonstra uma certa admiração pela força daquela crença, abrindo espaço para um bem-vinda dubiedade no filme. No entanto, me parece que há um certo limite para essa opção: o que falta a A Festa da Menina Morta é um pouco mais de coerência e cuidado na construção da narrativa. A Matheus Nachtergaele, o diretor, talvez falte experiência mesmo.





P.S.: não sei se o problema é do filme ou do cinema em que o assisti, mas o fato é que, devido à baixa qualidade do som, em inúmeros momentos o que os personagens diziam se tornou absolutamente inaudível. Às vezes acho que os filmes brasileiros deveriam ser exibidos com legendas nos cinemas...

terça-feira, 16 de junho de 2009

[o exterminador do futuro: a salvação]

O Exterminador do Futuro: A Salvação
Terminator Salvation, 2009
McG


Parece mentira, mas fui ao cinema cheio de fé assistir a um filme de McG. É que gosto bastante da série O Exterminador do Futuro (na verdade, adoro os dois primeiros filmes, e simplesmente suporto o terceiro), e confesso ter me deixado enganar pelos ótimos trailers dessa quarta parte, e me empolgado com a possibilidade de, pela primeira vez, vislumbrar com maior profundidade o tão propagado (pelos filmes anteriores) futuro apocalíptico sob o domínio da SkyNet. O resultado, no entanto, é muito irregular, e um tanto frustrante.
Em sua primeira metade, O Exterminador do Futuro: A Salvação não passa de um amontoado de cenas de ação, explosões e efeitos especiais grandiosos. O que não deixa de ser uma contradição: se McG acerta ao adotar um visual sujo, granulado, próprio de filmes de ação e/ou de guerra feitos recentemente e que dá ao longa um aspecto "realista" até então inédito na série, por outro lado ele cria sequências tão exageradas, que qualquer pretensão de realismo vai por água abaixo rapidamente. Com Christian Bale, surpreendentemente, aparecendo pouco nessa primeira metade, T4 joga todos os dados em Sam Worthington para segurar as inúmeras sequências de ação, e o resultado é um tanto cansativo (para os olhos, para os ouvidos, e para o bom gosto cinematográfico) e repetitivo.
Curiosamente, é quando os personagens de Worthington e Bale finalmente se encontram, quando se exige um pouco mais dramaticamente da dupla de atores, que o filme cresce. E cresce bastante. O primeiro diálogo entre a dupla, numa cena reveladora, é ótimo (a cena como um todo, na verdade, é muito boa). Bale mostra ter sido uma escolha acertada para interpretar John Connor, e Worthington consolida a força trágica de seu personagem. Daí até o final, a relação que se estabelece entre essa duas figuras é um tanto interessante, quer dizer, ao menos até a solução final encontrada por McG, piegas, clichê e irritantemente absurda. Aqui, novamente, o diretor contradiz o tom sério que parece pretender adotar no filme ao fazer uma opção exagerada e, nesse caso, melodramática.
Infelizmente, os escorregões não param por aí: há ainda uma trupe de coadjuvantes subaproveitados (me pergunto, primeiramente, o que está acontecendo com Bryce Dallas Howard, aquela mesma jovem e talentosa atriz que fez A Vila e Manderlay, e, em segundo lugar, o que Michael Ironside está fazendo no filme, interpretando de forma séria exatamente o mesmo tipo de personagem satirizado no cada vez mais atual Tropas Estelares) e uma irritante e inacreditável aparição meio Deus ex-machina de Helena Bonhan Carter no epílogo, para explicar, passo a passo, os planos vilanescos da SkyNet e os segredos da trama vista até ali para um dos "heróis". Esse é o tipo de solução narrativa que só serve para atestar a imensa falta de criatividade e talento de McG, sua incapacidade em tornar claro o que está acontecendo em seu filme de maneira orgânica, sem precisar apelar para um momento no qual tudo é interrompido, para que alguém possa fazer um discurso explicativo. No final, só resta a óbvia conclusão de que James Cameron está fazendo falta. E muita.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

[trailer: shutter island]

Finalmente saiu o trailer do novo filme de Martin Scorsese, Shutter Island, que se chamará no Brasil, como ocorrera com o livro no qual se inspira, Paciente 67. Como havia dito em um post anterior, li o livro de Dennis Lehane, e não consegui gostar tanto quanto imaginei que gostaria. No entanto, minha crença no cinema de Scorsese é grande demais para desanimar de um filme seu simplesmente pelo fato de o material original não ser tão bom.




Pois bem. Visto o trailer, a impressão que fica é que o diretor faz bom uso de todos os psicologismos da história de Lehane para realizar um estudo de personagem, como já imaginava.

E o resultado parece ser um filme tenso, sufocante, com alguns momentos sinistros. Fiquei com a impressão de que Scorsese se aproveita muito bem da relação traumática entre os personagens de DiCaprio e Michelle Williams, para criar cenas que aparentam ser comoventes, talvez o ápice do filme.

Mas, ainda assim, fica a impressão de que o que virá será uma obra menor na filmografia de Scorsese. O trailer apela claramente para o suspense puro e simples (onde o cineasta não tem lá muita experiência), inclusive para alguns clichês do gênero. Nesse sentido, pelas cenas mostradas, Scorsese parece se sair razoavelmente bem, criando momentos de bastante tensão, como já disse - o problema é que as palavras razoavelmente e Scorsese na mesma frase não combinam muito. E no elenco, ao menos nesse primeiro olhar, ninguém parece realmente se destacar. Mas, vale lembrar, Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo têm ótimos personagens em suas mãos, e é bem possível (e provável), que o resultado final seja melhor do que o que se viu até agora. Até porque DiCaprio vem rendendo cada vez mais nas mãos de Scorsese. Dos coadjuvantes, quase todos têm pouco tempo em cena (ao menos no livro), e aquele que aparece um pouco mais, não é um personagem verdadeiramente grande, e será interpretado por um Ben Kingsley que, aparentemente, está no "piloto automático".
Enfim, pareço bastante pessimista, mas a verdade é que ainda estou ansioso com o filme. E ainda acho que meu diretor favorito pode me surpreender positivamente, e me fazer "queimar a língua". Agora é aguardar até o dia 09 de outubro, quando Paciente 67 chega aos cinemas brasileiros.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

[frost/nixon]

Frost/Nixon
Frost/Nixon, 2008
Ron Howard



É curioso como figuras políticas que são geralmente detestadas, em alguns casos até execradas, costumam gerar bons filmes. E filmes que se tornam bons justamente ao humanizar essas figuras, ao ir além do estereótipo político. Richard Nixon é um desses casos. Sua trajetória já havia resultado na grandiosa biografia comandada por Oliver Stone, que acabava se perdendo em meio a tanta coisa para contar e na dúvida se admirava ou criticava o ex-presidente norte-americano. E agora Nixon volta em Frost/Nixon, uma obra de qualidade bastante superior ao trabalho de Stone.
Superior, em boa medida, devido justamente à forma como o "Trick Dick" é retratado. Ou melhor, como e por quem ele é interpretado. Saem de cena os maneirismos e exageros de Anthony Hopkins e entra a composição minimalista e delicada de Frank Langella (não deixa de ser curioso o fato de que nenhum dos dois atores realmente se parecem com o retratado, até porque Nixon possuía um rosto bastante incomum). O geralmente subaproveitado Langella constrói um personagem fragilizado em seus momentos íntimos, mas dono de um estranho fascínio e de inexplicável força intimidatória (a cena em que o personagem de Sam Rockwell é apresentado ao ex-presidente deixa isso bem claro). Seu Richard Nixon é detestável por seu estilo manipulador e empolado, e por seus atos políticos, mas é também uma imagem comovente da decadência de alguém que ocupou, após vários fracassos, o posto de homem mais poderoso do mundo, mas que viu seu sonho de poder esfacelar-se por sua própria culpa. Apesar de possuir menos tempo em cena do que Michael Sheen, a presença de Langella é grandiosa, sufocante, irresistível. Dá até para esquecer que um dia outro ator (e não um ator qualquer, mas Anthony Hopkins) interpretou o mesmo personagem.
Aliás, já que citei Sheen, o competente ator britânico repete aqui o bom desempenho de A Rainha e compõe com perfeição, e com ótima química, a complexa relação de David Frost com Nixon. No entanto, Sheen acaba sendo meio que "boicotado" pelo filme: quando está sozinho em cena, ou dividindo-a com outros coadjuvantes, geralmente estes são momentos pouco inspirados de Frost/Nixon, conduzidos com uma certa preguiça por Ron Howard. Quando está ao lado de Langella, se sai muito bem, mas tem uma imensa dificuldade de não ser eclipsado por seu colega protagonista. Talvez apenas em dois momentos Michael Sheen consiga se destacar - o diálogo ao telefone com seu "oponente" e o duelo final entre eles em frente às câmeras -, entretanto, mesmo aqui ele serve muito mais como um trampolim para o show de interpretação de Langella, não conseguindo dominar a cena de forma absoluta. De qualquer forma, é inegável que sua presença é fundamental para o êxito do filme, já que este se ergue sobre o relacionamento entre aqueles dois homens.
Frost/Nixon só não consegue ser uma obra verdadeiramente grande, totalmente digna da história que conta, devido ao seu diretor, Ron Howard. Geralmente apenas mediano, aqui Howard até se sai razoavelmente bem em muitos momentos (as cenas dos debates entre os protagonistas são muito bem filmadas, absurdamente tensas), mas parece claro que o diretor tem em suas mãos uma história muito superior aos seus dotes artísticos. Se o roteirista Peter Morgan mostra-se preguiçoso na construção dos personagens secundários de sua história, Howard erra nas inserções desnecessárias destes conversando com a câmera, dando depoimentos como em um documentário. Enfim, talvez esse seja o tipo de material que, nas mãos de um George Clooney, renderia uma pequena obra-prima - espécie de filme-irmão de Boa Noite e Boa Sorte (que, curiosamente, também conta com a presença de Langella no elenco). Mas, mesmo assim, Frost/Nixon é bastante superior a boa parte da filmografia de Howard. Valeu o esforço.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

[alguns filmes - maio]

Arca Russa
Russkij Kovcheg, 2002
Aleksandr Sokurov


Gosto de Cereja
Ta'm-e-Ghilass, 1997
Abbas Kiarostami


A Regra do Jogo
La Règle du Jeu, 1939
Jean Renoir


Rosetta
Rosetta, 1999
Luc Dardenne & Jean-Pierre Dardenne


Carlota Joaquina, Princesa do Brasil
Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, 1994
Carla Camurati


Cabra Marcado para Morrer
Cabra Marcado para Morrer, 1984
Eduardo Coutinho


Orfeu Negro
Orfeu Negro / Orphée Noir, 1959
Marcel Camus


Preso na Escuridão
Abre los Ojos, 1997
Alejandro Amenábar


Morte em Veneza
Death in Venice, 1971
Luchino Visconti


Rio, Zona Norte
Rio, Zona Norte, 1957
Nelson Pereira dos Santos


Vidas Secas
Vidas Secas, 1963
Nelson Pereira dos Santos


Madame Satã
Madame Satã, 2002
Karim Aïnouz


O Caso dos Irmãos Naves
O Caso dos Irmãos Naves, 1967
Luiz Sérgio Person


Toda Nudez Será Castigada
Toda Nudez Será Castigada, 1973
Arnaldo Jabor


O Bandido da Luz Vermelha
O Bandido da Luz Vermelha, 1968
Rogério Sganzerla


Guerra Conjugal
Guerra Conjugal, 1975
Joaquim Pedro de Andrade



Talvez impressionante seja o melhor adjetivo para classificar Arca Russa. Ou ainda melhor: assombroso. Pois assombro é a sensação que predomina ao se assistir a essa obra de Alksandr Sokurov, e isso não se dá apenas pelo fato de ela ser filmada em um único plano-sequência: mas principalmente pela forma como o diretor conduz esse plano-sequência, como se utiliza dele para realizar, mais do que um capricho estético, uma poderosa jornada dramática pela história da Rússia. A erudição impressionante de Sokurov (exibida não apenas no conhecimento da história de seu país, mas principalmente no seu imenso domínio estético e narrativo) combina perfeitamente com a suntuosidade dos ambientes do Palácio Hermitage, em São Petersbugo, e faz com que, o que poderia se transformar em simplesmente um chato e enfadonho "passeio" por um grandioso museu, acabe por ser uma belíssima, e amarga, visita a uma história cheia de nuanças, e, especialmente, um melancólico retrato do czarismo no limiar da Revolução de 1917. A câmera do diretor viaja, quase "flutua", sem nenhuma pressa, por cada um daqueles ambientes com uma desenvoltura que torna sua presença algo próximo de um ato poético - e, ao mesmo tempo, um ato político, pela inserção da figura prestes a se tornar anacrônica do diplomata francês, e especialmente do narrador-comentador da saga histórica da russa. Creio ser difícil terminar de assistir Arca Russa sem ficar com a sensaçao de ter, primeiramente, presenciado um marco do cinema contemporâneo, e, em segundo lugar, vivido uma inigualável experiência estética. Talvez não seja exagero dizer que, poucas vezes, o cinema mereceu tanto a alcunha de Arte como em Arca Russa.
Gosto de Cereja, Palma de Ouro em Cannes em 1997, é mais um belo filme a utilizar a morte, ou, mais especificamente, a vontade de morrer de um personagem, para falar da vida, para fazer uma ode à beleza desta. Foi meu primeiro contato com o cinema de Abbas Kiarostami, e a impressão foi muito boa: Gosto de Cereja é um trabalho muito bem filmado, envolvente mesmo sem possuir grandes viradas dramáticas na trama (a premissa do filme já é suficientemente instigante para segurar o interesse de quem o assiste, até o final), e dono de uma sensibilidade gigantesca e de diálogos muito bem escritos, fundamentais para a força do filme (especialmente aquele que envolve a bela metáfora das amoras). E tem o grande mérito de não ser óbvio, fugindo do melodrama, apostando num cinema paciente, meticuloso, sem grandes rompantes de dramaticidade, mas que consegue ainda assim possuir um final emocionante, ainda que irônico e dúbio. Por sobre a aridez do olhar que o protagonista, interpretado pelo estupendo Homayon Ershadi, tem acerca do mundo, Kiarostami nos lança as enigmáticas e belas imagens finais de Gosto de Cereja - talvez apontando para a possibilidade de diferentes visões sobre uma mesma situação, já que, onde um via aridez, tristeza, dureza, agora vê-se campos verdejantes. Talvez não seja exatamente isso o que Kiarostami quis dizer, mas não deixa de ser uma interpretação possível, creio. No fim das contas, portanto, é provável que seja mesmo esse o maior mérito do filme: evitar respostas prontas e apontar para a sempre bem-vinda possibilidade de reflexão.
Assim com sua "refilmagem/homenagem informal" Assassinato em Gosford Park, A Regra do Jogo é um ácido e delicioso retrato da aristocracia (no caso, francesa, enquanto no filme de Altman é a inglesa), permeado por pequenos conflitos de classe. Jean Renoir, mestre do cinema, demonstra um impressionante domínio de cena, uma capacidade assustadora em construir as relações entre o grupo de personagens que protagoniza o filme de forma verossímil e envolvente, chegando a conseguir que seu filme, muito mais simples e menos pretensioso, se torne superior à versão recente de Altman, outro mestre do cinema. Com um elenco afiado (com destaque para o cínico Marcel Dalio, e para o próprio Jean Renoir como o divertido, bufão e amorosamente frustrado Octave), o diretor opta por um número menor de personagens do que faria o outro diretor mais de 60 anos depois, e comete o grande acerto de, ao invés de colocar o crime ocorrido na festa como o ponto central da narrativa, como desencadeador de uma série de conflitos, deslocá-lo para o final da trama, transformando-o em uma espécie de "cereja no bolo" que funciona como reiteração da hipocrisia daquelas pessoas. Contando ainda com um bom número de cenas inesquecíveis (a caçada, por exemplo, é um primor, dotada de um componente sutil, mas por isso mesmo brutal, de crueldade que impressiona bastante), A Regra do Jogo é um filme que vem envelhecendo muito bem.
Carlota Joaquina, Princesa do Brasil costuma ser criticado, especialmente por historiadores (classe da qual faço parte), por fazer piada da história do Brasil, por fazer de personagens como D. João VI e Carlota Joaquina figuras risíveis. No entanto, não há problema algum em satirizar a história. Muito pelo contrário: a sátira, o riso, o escárnio, funcionam muitas vezes como veículo crítico fundamental, e as comédias históricas do Monty Python mostram isso muito bem. Carlota Joaquina, entretanto, é um filme ruim, e por outros motivos. Na verdade, o é por ser construído em uma lógica quase que completa oposta àquela que guiava o cinema dos comediantes ingleses responsáveis por A Vida de Brian e Em Busca do Cálice Sagrado. O lado satírico do longa de Carla Camurati não tem nada de ousado, de subversivo, de destruidor de mitos, como uma boa sátira deve ser. Ele funciona, basicamente, como elemento de reificação de uma versão da história do Brasil contada e repetida ad nauseum nas escolas e nos livros, não traz nada de novo, nada de contestador, nada de crítico. Daí sim a opção pela comédia se mostra um equívoco, até porque Camurati consegue a proeza de fazer um filme que quase nunca é verdadeiramente engraçado. Salva-se apenas o quase sempre inspirado Marco Nanini, que consegue humanizar um estereótipo e se tornar a figura mais digna de Carlota Joaquina. O que não deixa de ser muito pouco, para um filme que se tornou um verdadeiro marco na história recente do cinema brasileiro.
Rosetta é o segundo filme dos irmãos Dardenne que assisto, e, assim como acontecera com A Criança (ambos vencedores da Palma de Ouro no Festival de Cannes), novamente essa dupla de cineastas belgas me conquistam com seu cinema. Me encanta a forma como eles se utilizam de uma linguagem extremamente crua, realista, de câmera na mão seguindo seus personagens, para entregar filmes extremamente sensíveis, que tocam fundo em quem os assiste. Longe de utilizar-se dessa linguagem para propor um cinema pretensioso políticamente (como faz, em menor escala, Michael Winterbottom, por exemplo), os filmes do Dardenne são sobre o dia-a-dia de marginais, de pessoas que vivem preteridas pela sociedade, e que lutam de todas as formas possíveis (mas não abrindo mão de suas características particulares, sempre mantendo viva uma personalidade cheia de erros e acertos) para sobreviver. E sobrevivência é mesmo a palavra que define a saga da protagonista, que dá título ao longa, interpretada de forma assustadora e brilhante por Emilie Dequenne. Sua personalidade forte, unida às dificuldades que sua vida impões, fazem de Rosetta uma jovem já embrutecida, capaz de atos de "traição" à lealdade de um amigo (mas que, no contexto da situação apresentada pelos Dardenne, me parece bastante justificável), mas ainda assim dotada de uma imensa humanidade. Rosetta é um filme duro, triste e mesmo trágico, e que beira o sadismo, pela forma como os belgas tratam sua protagonista. No entanto, a forma como a dupla mostra a grandeza daquela jovem menina, sua força quase inabalável (reforçada pela presença única de Dequenne), dá ao espectador a sensação de que, por mais que os Dardenne imponham sofrimentos a Rosetta, há por sua figura um imenso respeito e admiração, que faz dela uma das personagens femininas mais marcantes do cinema recente.
Esperava um pouco mais de Cabra Marcado para Morrer, um dos mais festejados documentários da história do cinema brasileiro, e meu primeiro contato com o cinema de Eduardo Coutinho (primeiro de muitos, espero). Esperava um filme mais empolgante, envolvente, e, principalmente, mais provocativo e revoltante. No entanto, é inegável sua importância. Primeiramente como cinema: se não for o primeiro, Cabra Marcado para Morrer com certeza está entre os primeiros exemplares do cinema brasileiro, especialmente o documental, a refletir sobre o próprio ato de fazer cinema, retomando as filmagens de um longa de ficção que nunca foi terminado, transformando a história dessas filmagens interrompidas em objeto de um novo filme. Em segundo lugar, o filme conta uma história poderosa, que vale por si só. É de uma dureza impressionante as figuras humanas mostradas por Coutinho, especialmente a apaixonante protagonista. E é de uma tristeza maior ainda a história pela qual aquela mulher passou, e o diretor capta isso muito bem, por mais que, como disse anteriormente, não seja de uma forma exaltativa, que empolgue e emocione que assiste ao filme. Mas, em tempos de veículos de comunicação chamando o regime militar brasileiro de "ditabranda", em tempos em que os torturados daqueles governos continuam sem punição, filmes como Cabra Marcado para Morrer são de extrema importância para a lembrança da assustadora capacidade que a ditadura militar brasileira teve de destruir lares e famílias.
É conhecido o fato de que o Brasil nunca ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. No entanto, me perguntava: como não, se Orfeu Negro, vencedor de tal prêmio (e também da Palma de Ouro em Cannes), foi filmado no Brasil, com atores brasileiros, é falado em português, é baseado em uma peça de Vinícius de Moraes e tem trilha sonora composta pelo próprio, com músicas cantadas por ? O fato de ter sido feito por um francês, com dinheiro francês, o torna um filme francês? Vendo Orfeu Negro, entendi o porquê de não ser considerado como um longa brasileiro. Ao menos conceitualmente e culturalmente falando. A obra de Marcel Camus é, quase que completamente, um olhar estrangeiro sobre o nosso país. O que se vê tem muito pouco do Brasil real, das favelas e do samba reais, e muito de um olhar folclórico, exótico. O que não deixa de ser uma pena, já que conta uma bela história de amor, mas conduzida de maneira fake (não proposital, o que é pior), pouco convincente. De acordo com Camus, os brasileiros sambam o tempo inteiro, até quando estão atravessando o mar em uma barca (!), e a narrativa é montada quase que em cima de um êxtase ininterrupto - sem contar as interpretações, também fake, exageradas. Salvam-se, além da história, que é bela demais para conseguir-se estragá-la com facilidade, algumas boas cenas criadas por Camus (especialmente os momentos da busca de Orfeu por Eurídice, em um prédio deserto e no terreiro de candomblé).
Não deixa de ser interessante assistir a Preso na Escuridão já conhecendo sua refilmagem norte-americana, Vanilla Sky. Especialmente para notar o quanto o idioma em que um intérprete trabalha afeta seu desempenho - obviamente, estou falando de Penélope Cruz. Vanilla Sky deve ter sido um dos primeiros, se não o primeiro, filme com Cruz que assisti. E detestei sua performance. Passei a achá-la uma atriz medíocre, quando fui somando a este outros trabalhos em inglês dela. Logicamente, minha opinião sobre a atriz começou a mudar quando vi suas colaborações com Pedro Almodóvar, especialmente Volver, e, posteriormente, com Woody Allen, em Vicky Cristina Barcelona (que lhe deu um merecido Oscar). E agora, assistindo a Preso na Escuridão, vendo-a interpretear a mesma Sofia que interpretaria alguns anos depois ao lado de Tom Cruise, mas aqui falando espanhol, me encantei novamente com uma interpretação sua. A Sofia de Cruz aqui é absurdamente cativante, carismática, tem uma presença envolvente - não se apaixonar por ela é quase impossível. Aliás, o filme de Amenábar como um todo funciona muito bem, possui uma atmosfera bem menos grandiosa do que a versão de Cameron Crowe, o que dá a ele um estranho tom sombrio, e ainda tem a ótima dupla de atores Eduardo Noriega e Fele Martínez, que constroem uma dúbia e convincente relação de amizade entre seus personagens. O problema do filme é que, quando seus mistérios começam a ser resolvidos, quando os elementos um tanto bizarros entram na trama, o estranhamento é inevitável e, o que é pior, é grande demais. As cenas finais de Preso na Escuridão parecem simplesmente não pertencer ao mesmo filme que assistíamos até ali e, nesse sentido, me parece (pelo que lembro, já que faz um bom tempo que o assisti) que Vanilla Sky era bem melhor resolvido, já que possuía uma atmosfera grandiosa, e ao mesmo tempo etérea, por toda sua narrativa. Enfim, talvez finalmente tenha chegado a hora de rever o filme de Crowe.
Morte em Veneza é um filme difícil. Difícil de se assistir, por sua narrativa pausada e reflexiva, difícil de se apreender, devido a sua riqueza dramática e complexidade, e também difícil de se esquecer. Essa última característica se deve, em muito, ao monstro Luchino Visconti. É provável que dê para contar nos dedos das mãos os diretores de cinema que chegam perto do talento e brilhantismo desse italiano, da leveza com que filma, da capacidade artística que possui (quem me vem a mente imediatamente é Kubrick, e só). Morte em Veneza é, pela forma como Visconti o conduz, um filme angustiante, propositalmente exaustivo, que reproduz com perfeição tanto o ambiente externo em que seu protagonista se situa (uma Veneza um tanto fantasmagórica, ameaçada pela peste, onde ninguém parece querer dizer o que está acontecendo) quanto, principalmente, o turbilhão de sentimentos e dramas internos ao maestro Gustav von Aschenbach - vivido por um Dirk Bogarde que cria uma figura ao mesmo tempo repulsiva e digna de piedade. Assim como na obra-prima O Leopardo, Visconti filma um homem no ocaso de sua vida (ainda que os sentidos sejam diferentes, e que naquele filme ele estivesse falando mais dos últimos suspiros de um modo de vida do que propriamente do personagem de Burt Lancaster), mas ao mesmo tempo parecendo viver pela primeira vez, através da descoberta da beleza do jovem Tadzio. O que, como também ocorrera em O Leopardo, lhe dá a oportunidade de criar alguns momentos belíssimos, sublimes: a cena em que Aschenbach descobre que não conseguirá deixar Veneza, por exemplo, é um primor, um momento sutil onde Visconti e Borgarde dão ao protagonista uma pincelada de humanidade fundamental, assim como aquela em que o maestro se maquia, se embelezando para Tadzio. São momentos de delicada poesia construídos por um verdadeiro poeta do cinema.
Rio, Zona Norte e Vidas Secas são dois trabalhos primorosos de Nelson Pereira dos Santos, separados por um pequeno intervalo de 6 anos, mas que tiveram destinos diferentes. Apesar de aclamado, e citado nas antologias do Cinema Novo, o primeiro está longe de obter o reconhecimento que merece. Nelson Pereira filma um Grande Otelo em estado de graça, dando vida a uma figura quase "chapliniana", adorável e sofrida, o que não deixa de dar um ar universal a Rio, Zona Norte - mas, ao mesmo tempo, Espírito (o personagem de Otelo) é a encarnação de um tipo profundamente brasileiro. Ele é maltratado durante todo o filme, mas é visto com um profundo carinho por Nelson Pereira, que dá vida a uma realidade urbana marginalizada, a um Rio de Janeiro pouco mostrado até então - e seu olhar quase neo-realista dá a essa imagem uma beleza impressionante, que culmina na maravilhosa e trágica cena do trem, que encerra o filme. Rio, Zona Norte, em sua pouca pretensão de ser grande, de ser um grande tratado sobre a sociedade brasileira, acaba se tornando exatamente um dos filmes feitos por cinemanovistas que mais têm a dizer sobre o Brasil. Seguindo esse raciocínio, Vidas Secas trilha o caminho oposto: adere claramente às tentativas do Cinema Novo de explicar o país, e de se produzir um cinema essencialmente nacional - até porque adapta uma obra literária que tem tudo a ver com essas propostas. No entanto, o talento de Nelson Pereira, aliado à força do texto no qual se baseia, consegue fazer do filme mais do que um capítulo de um movimento de cinema no Brasil: Vidas Secas é uma obra de arte. O diretor capta, com exatidão, as palavras de Graciliano Ramos, e entrega um filme verdadeiramente seco, duro, brutal. Assisti-lo dói aos olhos, por sua fotografia estourada, que deixa as imagens quase totalmente brancas. E, por mais que, em alguns momentos, a pouca experiência dos atores incomode, o resultado final é um primor, uma verdadeira reunião de cenas que beiram o brilhantismo (me encantam particularmente aquela em que um dos filhos do casal Fabiano e Vitória pergunta à mãe o que é inferno, seguida da reação desta, e da ingenuamente sábia reação do menino, brilhantemente filmada por Nelson Pereira dos Santos, e a dolorosa cena final da cadela Baleia, talvez um dos momentos mais emocionantes do cinema brasileiro), e que, se não fazem de Vidas Secas a melhor adaptação de Graciliano Ramos para o cinema (S. Bernardo ocupa esse posto), torna-o um filme que honra completamente a obra desse grande escritor.
Apesar de reconhecer e admirar o talento de Lázaro Ramos, confesso estar um tanto saturado da superexposição da imagem desse ator, que se transformou em uma estrela não só do cinema, mas também da TV brasileira. Foi só assistir a Madame Satã, longa que o lançou à fama, para essa saturação desaparecer. No impressionante filme de Karim Aïnouz (um dos grandes diretores brasileiros do momento, sem dúvidas), Ramos consegue ser ainda mais impressionante. Aliás, no limite, acho que o filme é impressionante muito mais por causa de seu protagonista do que por qualquer outro motivo. É uma entrega verdadeiramente de corpo e alma a um personagem controverso, e bastante difícil de se interpretar, uma entrega que assusta a quem a assiste: por exemplo, o "tesão" com que o ator interpreta as ousadas cenas de sexo é assombroso, e fundamental para o êxito do filme (e Ramos parece compreender isso claramente). Há de se dar valor, é verdade, a Aïnouz e aos coadjuvantes de Madame Satã: enquanto estes dão vida aos marginalizados que rodeam o personagem de Lázaro Ramos, mas que não são meras peças figurativas em sua trajetória, sendo cada um deles encarnados com a sensibilidade necessária por seus intérpretes (com destaque para a dupla que forma a "família" do protagonista, vivida pelos excepcionais Marcélia Cartaxo e Flávio Bauraqui), é o diretor o responsável pela força marginal que o filme possui, pela brilhante reconstituição de época, e pelo delicado retrato de um grupo de pessoas completamente excluídos da sociedade. No entanto, basta o monstro Lázaro Ramos entrar em cena, para esquecermos isso tudo. E o filme se torna dele, só dele.
Vai aqui uma afirmação arriscada, e embasada somente em um achismo: me parece que Luiz Sérgio Person era o mais talentoso cineasta de sua geração. Já me impressionara com seu São Paulo S.A., com sua brilhante direção de atores, com sua capacidade de conduzir uma trama reflexiva e contundente sem ser panfletário, nem hermético. Parecia estar assistindo a uma versão brasileira de A Doce Vida, de Fellini, mas sem ser imitativo do cinema do italiano: o que aparentava haver era uma confluência de sensibilidades maravilhosa. Pois bem, assistindo a O Caso dos Irmãos Naves, minhas impressões sobre o talento de Person não só foram reiteradas, mas aumentadas. É um filme completamente diferente de São Paulo S.A., o que torna ainda mais impressionante o talento de seu diretor, que demonstra trafegar sem grandes problemas por temas e gêneros distintos, inclusive dentro de um mesmo filme. O Caso dos Irmãos Naves é, primeiramente, um poderosíssimo drama, uma história assustadoramente trágica e revoltante por si só, mas que, nas mãos de Person, se torna um contundente veículo para abominar qualquer forma de tortura e/ou coação, física ou psicológica. Nesse sentido, a maneira como o diretor filma as sequências onde os sofridos personagens de Raul Cortez e Juca de Oliveira são massacrados pela crueldade do policial interpretado por Anselmo Duarte impressiona: nada é atenuado, e a força daquelas imagens não deve em nada a momentos de violência do cinema recente, onde técnicas mais desenvolvidas para fimar cenas do tipo existem. Mas O Caso dos Irmãos Naves é também um envolvente drama de tribunal, onde Person se utiliza de uma narrativa tensa e detalhada do processo contra os Naves para causar indignação em quem acompanha o absurdo desenrolar dos acontecimentos, e onde John Herbert aproveita para surpreender em um desempenho acachapante, que não deixa de remeter a presença de Gregory Peck em O Sol é para Todos. E, por fim, O Caso dos Irmãos Naves é também um filme de horror. Se não no sentido tradicional do termo, o é na forma como a crueldade e a desumanidade são mostradas (especialmente nas já citadas cenas de tortura), e também por ter no elenco um Anselmo Duarte assombroso, criando aquele que talvez possa ser considerado o maior "vilão" que o cinema brasileiro já produziu. Sua interpretação é perfeita. Sua presença, aterrorizante.
Toda Nudez Será Castigada é uma bela introdução ao cinema de Arnaldo Jabor. E é provavelmente uma das melhores, se não a melhor, adaptação de uma obra de Nelson Rodrigues para o cinema. Tenho certa dificuldade em esquecer da figura atual de Jabor, comentarista político que adota posições das quais geralmente discordo profundamente, mas é quase impossível não admirar seu trabalho como cineasta nesse filme. Ele capta com perfeição o "espírito" de Rodrigues, e o resultado é uma implacável comédia de costumes que vê com acidez a moral conservadora das classes médias brasileiras, e ao mesmo tempo uma triste e trágica história de amor. Toda Nudez Será Castigada tem dois grandes e fortes alicerces: o primeiro é o texto de Rodrigues; o segundo é seu elenco, especialmente o casal de protagonistas. Darlene Glória e Paulo Porto estão soberbos em cena: ela, uma femme fatale de bom coração e personalidade forte, uma figura irresistível; ele, o símbolo da fragilidade masculina diante de uma mulher arrebatadora, e, ao mesmo tempo, o portador de uma série de preceitos retrógados que o impedem de viver verdadeiramente a vida. Por ela, torcemos pela felicidade do casal; por ele, e por sua insuportavelmente conservadora família, torcemos pelo fracasso desse relacionamento, fundado na hipocrisia. Talvez o único porém do filme se dê no envolvimento de Geni, personagem de Glória, com o jovem filho de Herculano (o personagem de Porto), que, como ocorre meio que às pressas na trama, acaba soando forçado - se desenvolvido com maior calma por Jabor, o resultado seria, provavelmente, a perfeição, já que tal relacionamento faz completo sentido na proposta de Rodrigues. Costumeiramente chamado de "pornochanchada", talvez por suas cenas de nudez e temática sexualizada, Toda Nudez Será Castigada definitivamente não merece ser reduzido a um rótulo empobrecedor (e preconceituoso) como esse, até porque tem muito pouco a ver com os filmes que verdadeiramente podem ser considerados como tal. Chamá-lo de "pornochanchada", é aderir a um comportamento conservador e reducionista, parente próximo da moral repressora de Herculano e sua família. Reconhecer sua ousadia e força crítica, é ser ousado como Jabor, é, de alguma forma, "fugir com o ladrão boliviano". Quem assistiu, sabe do que estou falando.
O Bandido da Luz Vermelha é um filme muito, muito estranho, e, ao menos para mim, de difícil apreciação. Ícone máximo do cinema marginal brasileiro, o trabalho de Rogério Sganzerla é, a seu próprio modo, ancorado em uma prática antropofágica, ao menos na forma como o cineasta capta, devora, as mais diversas influências, e as joga na narrativa de sua obra. Num primeiro olhar, talvez superficial, O Bandido da Luz Vermelha parece um encontro entre o noir de Orson Welles em A Marca da Maldade com o Godard de Acossado, temperado com um forte sabor tupiniquim, com um subdesenvolvimento explosivo ("o terceiro mundo vai explodir, e quem tiver sapato não sobra!") - além das referências à ficção-científica, ao cinema policial, ao cinema político etc. Alterna momentos de puro brilhantismo (sendo a impagável narração radiofônica que perpassa o filme o maior deles, uma escolha absolutamente genial de Sganzerla, que dá o tom satírico-antropofágico da narrativa) com outros que soam gratuitos, e que tornam O Bandido da Luz Vermelha um tanto cansativo. Mas é um filme inegavelmente bem filmado por Sganzerla, que conta com um protagonista marcante (Paulo Villaça é ótimo!) e dono de uma relevância incalculável. Decididamente, é um filme a ser assistido mais de uma vez, até para que se torne possível uma maior apreensão das inúmeras referências antropofagizadas por Sganzerla e, quem sabe daí, um melhor proveito desse marco do cinema brasileiro.
Impressiona o talento de Joaquim Pedro de Andrade para adaptar grandes escritores brasileiros para o cinema (e para saber isso, bastaria assistir a Macunaíma, seu mais famoso filme). Nesse excepcional Guerra Conjugal, depois de trafegar pelas obras de Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade e Cecília Meirelles, Joaquim Pedro adapta uma série de história de Dalton Trevisan. O cineasta retoma aqui o humor ácido e grotesco de Macunaíma, agora para filmar três pequenos contos sobre relacionamentos amorosos, o que resulta em um assustador e doloroso retrato dos desejos mais baixos do ser humano, com um elenco primoroso (o destaque vai para Jofre Soares e Carmem Silva, dando vida àquela que talvez seja a mais triste das três histórias, pela forma como aqueles dois idosos, que provavelmente já se amaram um dia, se maltratam nos momentos finais de suas vidas, e para um cínico e ótimo Lima Duarte). E é sintomático do êxito alcançado aqui por Joaquim Pedro que, justamente o segmento mais fraco do filme (aquele envolvendo o personagem de Carlos Gregório), que soa deslocado do restante da narrativa e gratuito em muitos momentos, seja também o responsável pelo melhor momento de Guerra Conjugal: seu belíssimo e revelador desfecho. Um filme tristemente cômico, e comicamente triste, que é um dos momentos mais inspirados da obra de Joaquim Pedro de Andrade.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

[simonal - ninguém sabe o duro que dei]

Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei
Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei, 2009
Cláudio Manoel & Micael Langer & Calvito Leal


Para falar desse comentado documentário sobre Wilson Simonal, vou contar como cheguei até ele, já que, a princípio, não seria um filme que correria para assistir como acabei fazendo. Pois bem, tudo começou em uma aula do mestrado, onde o professor comentou sobre essa recuperação da figura de Simonal nesse momento, criticando-a com veemência, e contando a famosa história na qual o cantor mandou sequestrar e torturar seu contador de então, por entender que este o roubava, o que acabou por ligar Simonal ao tenebroso DOPS (o ocorrido foi em 1971), destruindo por completo sua carreira. Confesso que nunca tinha ouvido falar de tal história. Simplesmente sabia que existira um cantor brasileiro chamado Wilson Simonal, que era pai dos atualmente também músicos Simoninha e Max de Castro, e nada mais - sequer sabia que muitas músicas famosas do período haviam sido gravadas por ele (como a deliciosa "Nem vem que não tem", tocada recentemente em Cidade de Deus).
A fala do professor, no entanto, coincidiu com o momento em que lia, para minha pesquisa no mestrado, o livro "Verdade Tropical", escrito por Caetano Veloso e que ao falar sobre a experiência tropicalista, toca, inevitavelmente, em nomes e histórias do período. Wilson Simonal aparece algumas vezes na fala de Caetano, mas muito rapidamente, e sua história não é sequer citada. "Por que será?", pensei. Daí para uma sessão de Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei foi um pulo.
A polêmica em torno do filme se retém justamente na discussão sobre o "julgamento" e condenação de Simonal como artista pelos seus colegas de classe, em sua maioria figuras de esquerda: acusado de dedo-duro, de entregar outros artistas para a ditadura, o cantor foi execrado, sofreu boicotes, e nunca mais conseguiu ser o que era (como mostra o filme, em finais dos anos 60 ele chegava a disputar com Roberto Carlos o posto de maior astro da música brasileira). A verdade é que, como cinema, Simonal não é lá grande coisa. É um documentário bastante convencional, linear e factual, pouquíssimo criativo. Faz uso de umas estilizações visuais que não cabem (e que deveriam ter se restringido aos créditos iniciais) e conta com depoimentos repetitivos, que chegam a cansar, e alguns extremamente pretensiosos, como é o caso do de Chico Anysio. Até certo ponto, parece simplesmente um especial feito para a TV - ainda que, ressalte-se, haja no filme um impressionante uso de imagens de arquivo, muito bem cuidadas, que servem para tornar palpável a popularidade do cantor, da qual os entrevistados tanto falam. Aliás, em um momento aparece um recorte de jornal perguntando: "A Simonal, quem resiste?". Assistindo a essas imagens, fica mesmo difícil de resistir àquela figura.
Quando entra na discussão sobre o ocorrido com Simonal, suas possíveis ligações com o DOPS e sua execração pública por seus companheiros artistas, o filme parece tomar uma posição clara de ser a favor do cantor, criticando seus críticos, absolvendo-o de qualquer culpa, a não ser da culpa de ser ignorante quanto a situação política do país naquele momento. Nesse sentido, fala-se muito nas tais "patrulhas ideológicas" da esquerda, que de fato existem, e podem ser extremamente perversas, no entanto, me pergunto até que ponto não haveriam, hoje em dia, tais patrulhas também do outro do lado, do lado acusador, das direitas. Vemos alguns meios de comunicação aproveitarem-se de um filme como Simonal para destilarem, de forma raivosa, novamente seus rancores e ódios mortais com relação a qualquer postura de esquerda no país, e ninguém critica isso. Além do mais, chama-se a esquerda de intolerante (o que de fato é, em muitos momentos), mas há também uma imensa intolerância por parte desses críticos: falta um pouco de compreensão histórica sobre o período, sobre o porquê das polarizações tão explícitas que ocorriam (algo que o cartunista Jaguar diz, de certa forma, no filme). Extendo essa minha crítica especialmente ao depoimento do já citado Chico Anysio, que, apesar de encerrar com uma bela fala o filme, na maior parte do tempo se comporta como o senhor da verdade, julgando a tudo e a todos.
No entanto, Ninguém Sabe o Duro que Dei ganha em complexidade em sua parte final, pois os diretores optam por entrevistar o tal contador, dar a ele a oportunidade de contar sua versão dos fatos. E aí a crueldade do ato de Simonal fica patente, e o documentário se coloca em uma bem-vinda posição de abertura aos diferentes lados da questão. O que faz com que, no fim das contas, recupere-se a grandeza do cantor Wilson Simonal - dono de uma voz marcante e de canções inesquecíveis, um artista que não deve ser condenado a um limbo eterno, pois sua obra e seu talento são importantes demais para isso - mas ao mesmo tempo condene-se seu ato, não diminuindo sua gravidade. Ou seja, o que faz com que o filme supere suas limitações artísticas e se torne uma obra de qualidade razoável é simplesmente seu conteúdo, a riqueza trágica da história que conta. Nas mãos certas, daria um belo longa de ficção.