terça-feira, 31 de maio de 2011

Asas do Desejo



Ainda na adolescência, estive entre aqueles que não seguraram as lágrimas ao assistir Cidade dos Anjos, com Nicolas Cage e Meg Ryan. Já minha primeira impressão de Asas do Desejo, premiado drama de Wim Wenders no qual o choroso filme de Brad Silberling se inspirou, não foi muito boa: achei-o arrastado, cansativo, aborrecido. Nada que o tempo não resolvesse. Revistos alguns bons anos depois, Cidade dos Anjos se revelou uma bobagem sem tamanho, que beira o constrangimento, enquanto Asas do Desejo se transformou num dos filmes de minha vida. Como explicar?

Na verdade, Asas do Desejo e Cidade dos Anjos têm pouco em comum – talvez apenas a premissa de que existem anjos que andam sobre a Terra zelando por seres humanos angustiados, já que mesmo a história de amor contada por Wenders segue caminhos bem distintos dos daquela protagonizada por Cage e Ryan. O filme alemão é uma coleção de passagens belíssimas (a primeira sequência na biblioteca; o anjo Bruno Ganz conduzindo a morte de um homem; a última apresentação da trapezista no circo; as duas visitas de Ganz a uma boate; e, é claro, todo o epílogo, com a concretização de sua história de amor), embaladas por uma narrativa carregada de poesia. Wenders coloca na tela uma Berlim decadente, melancólica, povoada por personagens desiludidos e emocionalmente em frangalhos – mas são justamente essas mazelas que fascinam os anjos Ganz e Otto Sander, por serem parte constituinte da humanidade que tanto almejam.

Nesse misto de ode e olhar triste para a condição humana, Wenders compõe um pujante painel de emoções que exala vida, no contraste com a existência etérea de seus anjos. No fim das contas, nós, humanos, dotados de dores e sofrimentos decorrentes em boa medida da inescapável vontade de não morrer, compreendemos o desejo desesperado do protagonista de Asas do Desejo por mortalidade. Talvez, mais do que simplesmente existir, seja da vida carnal, com seus pequenos e efêmeros prazeres, que não queiramos nos despedir. 


Asas do Desejo 
Wings of Desire / Der Himmel über Berlin, 1987
Wim Wenders

terça-feira, 24 de maio de 2011


[o vencedor]

O Vencedor
The Fighter, 2010
David O. Russell


Passei grande parte da primeira metade de O Vencedor com um nó na garganta. Ver o personagem miserável de Mark Wahlberg sofrer nas mãos de sua família, composta por figuras tão ou mais miseráveis que ele, é uma tarefa árdua. E mais doloroso ainda é acompanhar o relacionamento destrutivo entre Wahlberg e seu irmão interpretado por um assombroso Christian Bale. Há tanto amor entre os dois, tanto carinho, e mesmo assim o resultado desses encontros não passa de uma sucessão de desastres, que servem para afundá-los ainda mais em sua miséria sem fim. Ecos de Touro Indomável? Elogio maior não poderia ser feito ao filme de David O. Russell, que é, de fato, uma gratíssima surpresa. Para além de todos os clichês de um aparente legítimo representante do gênero "história de superação", O Vencedor é um filme sobre pessoas que se amam desesperadamente, mas que não são capazes de transformar esse amor em algo construtivo. O Dick Eklund de Bale é o exemplo máximo disso: ex-grande promessa do boxe, ex-"orgulho de Lowell", o personagem é dono de um carisma absurdo e de uma intensidade contagiante; mas deixar-se seduzir por ele significa ir com ele para o buraco. Eklund não passa, no momento em que o encontramos no filme, de um viciado em crack que destrói tudo e todos a seu redor, simplesmente porque é alguém adorável demais para ser odiado ou abandonado. É claro que para nós, espectadores, que não conhecemos o verdadeiro Dick Eklund, resta a caracterização de Christian Bale. E como o ator entrega aqui aquele que é, de longe, o melhor desempenho de sua carreira (e, voltando a lembrar de Touro Indomável, um desempenho talvez comparável ao de De Niro na obra-prima de Scorsese), entendemos direitinho o porquê do amor incondicional que todas aquelas figuras grotescas (e verdadeiras, por conseguinte), nutrem pelo não menos grotesco Eklund.
Quando O. Russell mira sua câmera para o turbilhão de emoções que envolve seus personagens, para as dolorosas discussões familiares e as tentativas de manutenção do controle pela matriarca Melissa Leo (outra atuação fabulosa), para o amor redentor entre os personagens de Wahlberg e Amy Adams, para os rostos marcados pelo sofrimento da popualção de Lowell, o diretor fica bem próximo de realizar uma obra-prima. O problema é que há o boxe na história. E a abordagem para a trajetória esportiva de Micky War segue a cartilha do "drama esportivo com mensagem edificante". Sai de cena Touro Indomável, e entra Rocky. E daí O Vencedor cai bastante em qualidade. Ou seja, o que temos aqui é um filme de boxe mediano, e um poderoso drama familiar.

segunda-feira, 23 de maio de 2011


[os filmes mais aguardados de 2011]

Num momento em que Cannes celebra seus vencedores e Veneza começa a anunciar alguns de seus participantes, resolvi ceder ao impulso irresistível de montar uma breve lista com os filmes de 2011 que mais geram expectativas em mim. Sei que é provável que alguns deles só venham de fato a estrear nos cinemas brasileiros nos primeiros meses de 2012, mas como a essa altura do campeonato (quase) tudo é incerto, não me importei muito com esse detalhe - sem contar que há sempre a possibilidade de que esses filmes sejam exibidos no Festival do Rio, em outubro, no qual espero estar presente. Enfim, segue a lista.


10- Xingu, de Cao Hamburger


O que é: Narra a trajetória dos irmãos Villas-Bôas (interpretados por Caio Blat, João Miguel e Felipe Camargo), idealizadores da reserva do Parque do Xingu, desbravando os sertões brasileiros.

Porque pode ser bom: O longa anterior de Hamburger, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, é uma preciosidade, e a expectativa para seu retorno à direção é alta. Não dá para não esperar um drama poderoso e delicado com um tema como esse nas mãos.


9- On the Road, de Walter Salles.


O que é: Adaptação de obra clássica da literatura beat, narra as viagens pela América de seu autor, Jack Kerouac.

Porque pode ser bom: Bom, Salles tem no currículo os maravilhosos road movies Central do Brasil e Diários de Motocicleta, e sempre pareceu o nome perfeito para transformar em filme a obra de Kerouac. Junte-se a isso o elenco de qualidade (Sam Riley, Kristen Stewart, Viggo Mortensen, Amy Adams, Elisabeth Moss, Terrence Howard, Steve Buscemi, Alice Braga) e o roteirista José Rivera (o mesmo de Diários), e fica bem difícil não acreditar que o diretor brasileiro finalmente fará um grande filme em solo norte-americano.


8- Carnage, de Roman Polanski


O que é: Desentendimento entre crianças em um playground se transforma em debate áspero entre seus pais, onde temas como racismo e homofobia vem à tona. Baseado na peça Le Dieu du Carnage, de Yasmina Reza.

Porque pode ser bom: Seres humanos deixando vir à tona seu lado mais agressivo, vistos pelos olhos de Polanski? Kate Winslet, Jodie Foster, Christoph Waltz e John C. Reilly juntos? Difícil é imaginar porque esse filme não seria bom...


7- Drive, de Nicolas Winding Refn


O que é: No sul da Califórnia, motorista dublê de filmes tem um outro emprego à noite dirigindo para criminosos em roubos. Quando descobre que está marcado para morrer, ele precisa salvar a própria pele.

Porque pode ser bom: Refn, um dos diretores mais comentados do momento, levou o prêmio de direção em Cannes por esse filme - que, aliás, foi elogiadíssimo pela crítica durante o Festival. Sem contar que, no elenco, estão Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston e Christina Hendricks.


6- The Artist, de Michael Hazanavicius


O que é: Na Hollywood dos anos 20, um astro do cinema mudo vê sua arte entrar em decadência, diante da ascensão do cinema falado e de uma de suas estrelas.

Porque pode ser bom: Também premiado em Cannes (Dujardin levou melhor ator), The Artist foi provavelmente o filme mais amado do Festival, e já começam a surgir boatos de indicações para o Oscar no ano que vem. Homenagem ao cinema, em preto-e-branco, com atuações elogiadas... pressinto paixão à primeira vista.


5- Melancolia, de Lars von Trier


O que é: Justine (Kirsten Dunst) e Michael (Alexander Skarsgård) estão celebrando seu casamento em uma festa suntuosa na casa de sua irmã (Charlotte Gainsbourg) e cunhado (Kiefer Sutherland). Enquanto isso, o planeta Melancolia está se dirigindo em direção à Terra.

Porque pode ser bom: Porque é um filme de Lars von Trier. E também porque foi muito elogiado em Cannes - houve mesmo quem dissesse ser esse seu melhor trabalho -, e agraciado com o prêmio de melhor atriz, a despeito de toda a polêmica envolvendo as declarações do diretor sobre o nazismo.


4- A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar


O que é: Inspirado no livro Tarantula, de Thierry Jonquet, narra a saga de um cirurgião plástico (Antonio Banderas) que busca vingar a morte de sua filha.

Porque pode ser bom: Porque é um filme de Almodóvar. E porque é o reencontro do diretor com Banderas depois de mais de 20 anos (desde Ata-me os dois não trabalhavam juntos), e porque encantou a crítica em Cannes - mesmo tendo saído do Festival de mãos vazias.


3- A Dangerous Method, de David Cronenberg


O que é: Os conflitos entre Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael Fassbender), segundo David Cronenberg.

Porque pode ser bom: Porque traz os conflitos entre Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael Fassbender), segundo David Cronenberg. Precisa dizer algo mais?


2- Super 8, de J.J. Abrams


O que é: A história gira em torno de um grupo de amigos que grava um filme amador utilizando uma câmera super-8. No momento em que rodam uma das cenas, testemunham o momento exato em que um caminhão choca-se com um trem de carga. Pouco tempo depois, diversos desaparecimentos incomuns começam a acontecer e é apenas uma questão de tempo até que os garotos se deem conta de que aquele pode não ter sido um simples acidente.

Porque pode ser bom: Porque é J.J. Abrams homenageando o cinema feito por Steven Spielberg nos anos 70 e 80 (mais especificamente, filmes como Contatos Imediatos do Terceiro Grau e E.T.). Dá para resistir?


1- A Árvore da Vida, de Terrence Malick


O que é: Nos dias atuais, um homem (Sean Penn) relembra sua infância nos EUA da década de 1950, ao lado da mãe religiosa e do pai autoritário.

Porque pode ser bom: Muito antes de toda a badalação em Cannes, de onde saiu com a Palma de Ouro, A Árvore da Vida já era um dos filmes mais aguardados por mim nos últimos tempos (algo que já havia deixado claro quando da divulgação de seu trailer). E simplesmente pelo fato de seu diretor ser o sr. Terrence Malick. O homem é um gênio, um poeta das imagens, um esteta talvez sem igual no cinema atual - e é também o responsável por um dos filmes que mais amo no mundo, Além da Linha Vermelha. Isso basta para justificar meu interesse por qualquer coisa que ele produza. A Palma de Ouro é só a cereja no bolo.

segunda-feira, 16 de maio de 2011


[não me abandone jamais]

Não Me Abandone Jamais
Never Let Me Go, 2010
Mark Romanek


"Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro no Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer." É com esse monólogo que o replicante interpretado por Rutger Hauer na obra-prima Blade Runner se despede da vida, diante de um atônito Harrison Ford, num dos momentos mais bonitos da história do cinema. Mas não seria estranho se essas palavras fossem ditas por algum personagem de Não Me Abandone Jamais. Inusitada mistura de drama de época e ficção-científica, o filme de Mark Romanek carrega nas tintas da melancolia para contar a história de um trio de jovens clones criados exclusivamente para doarem seus órgãos às pessoas "normais" - logo, seres dotados de uma vida limitada, com prazo determinado para terminar, assim como os personagens do clássico de Ridley Scott. É essa melancolia que embala toda a trajetória dos personagens de Não Me Abandone Jamais, figuras que em alguns momentos parecem ser tratadas com certa frieza por Romanek e pelo roteirista Alex Garland, ainda que defendidas com imenso talento por Carey Mulligan, Keira Knightley e Andrew Garfield (com imenso destaque para Mulligan e Garfield, duas das maiores revelações do cinema recente). Mas, se pensarmos bem, grande parte da força de Blade Runner estava justamente em seu clima também profundamente melancólico e na frieza de seus personagens, que atingia mesmo seu protagonista humano (será?). Nesse sentido, seguindo com a comparação entre os filmes, talvez a opção de Romanek pelo distanciamento em relação à história contada possa ser justificável. Ainda mais levando em conta o impacto causado exatamente pelo momento que destoa do resto da obra, em que ocorre uma dolorosa explosão de emoções de um determinado personagem. É quando qualquer resquício de frieza é eliminado, e temos certeza de que aqueles jovens, criações artificiais da ciência, não são em nada diferentes de qualquer ser humano, e que seus medos e angústias são, como bem define a narração em off que encerra Não Me Abandone Jamais, os mesmos que sentimos, todos. Somos também um pouco como Kathy, Tommy e Ruth; somos um pouco como Roy Batty: só desejamos um pouco mais de tempo, estejamos fadados a viver 4, 30 ou 90 anos.

domingo, 1 de maio de 2011


[turnê]

Turnê
Tournée, 2010
Mathieu Amalric


Mathieu Amalric é um dos melhores atores do cinema contemporâneo - qualquer um que assistiu a filmes como Reis e Rainha, O Escafandro e a Borboleta e A Questão Humana sabe muito bem disso -, e não chega a ser exatamente uma surpresa que ele se saia tão bem na direção de longa-metragens. Turnê, seu segundo trabalho como diretor, é uma preciosidade. Amalric é extremamente carinhoso no olhar que lança sobre seus personagens, um grupo de dançarinas burlescas norte-americanas carregadas de melancolia quando estão fora do palco e seu empresário francês (interpretado pelo próprio diretor), um típico fracassado boa-praça, cheio de dívidas e de boas intenções, que embarca em uma delicada tentativa de aparar algumas arestas de seu passado ao retornar à França para a turnê do título. Estruturado praticamente como um diário de viagem, Turnê é daqueles raros filmes que conseguem ser doces ao retratar figuras amargas, machucadas pela vida (sei que há outros, e provavelmente mais apropriados, exemplos que se aproximam do filme de Amalric, mas não consegui não me lembrar de O Lutador). Os fracassados e marginalizados se entendem, e formam um grupo que pode tranquilamente ser chamado de família. O diretor/ator opta por nunca apelar para momentos catárticos ou grandes transformações emocionais em seus protagonistas, permanecendo sempre num registro simples e delicado do cotidiano daqueles personagens. E o resultado é um filme muito bonito.