O som chegou ao cinema
acompanhado de algumas previsões apocalípticas, que anunciavam a morte de uma arte
recém-nascida, desprovida, a partir daquele momento, de sua pureza inicial.
Ainda que, quase um século depois, seja possível compreender tais previsões,
elas se mostraram falsas – foram atropeladas pelo talento de gente como Billy
Wilder.
Na conclusão de Se
Meu Apartamento Falasse (1960), Wilder explicita o valor que o som
pode assumir num filme. A sequência tem início com as personagens Fran Kubelik
(Shirley MacLaine) e Jeff Sheldrake (Fred MacMurray) numa festa de Ano Novo. Os
dois, patrão e funcionária, mantêm um longo affair e agora ele
finalmente se divorciou para assumir tal relação. Ela, no entanto, se dá conta
de que seu verdadeiro amor é C.C. Baxter (Jack Lemmon), ex-colega de empresa
que a salvou num momento de extrema fragilidade, e escapa para o apartamento
deste. Após correr pelas ruas de Nova York ao som do tema do filme, Kubelik
chega ao prédio de Baxter, sobe as escadas apressada e... ouve um estrondo.
Como nós, espectadores,
ela já foi informada de que Baxter possui uma arma em casa. Teria ele colocado fim à própria vida, diante de seu amor não correspondido por Kubelik? Não
exatamente: ao ter seu nome gritado desesperadamente pela jovem mulher, C.C. Baxter
abre, surpreso, a porta de seu apartamento, com uma champanhe recém estourada
em uma das mãos (afinal, é Ano Novo).
É o uso do som, de um
ruído, que move as emoções dos espectadores e de Fran Kubelik. Acreditamos, com
ela, que Baxter pode ter de fato se matado, já que Se Meu Apartamento
Falasse é uma comédia romântica amarga, que tem o suicídio como um de
seus temas: a própria personagem de MacLaine tentara se matar ao ser tratada
com descaso por Sheldrake. Ou seja, mesmo numa rápida brincadeira, que soa como
uma piscadela para o espectador mais atento, Billy Wilder não abre mão da
coerência narrativa.
No recente O Artista, de Michel Hazanavicius, há uma brilhante referência a esse momento de Se Meu Apartamento Falasse: acompanhamos, em montagem alternada, o personagem George Valentin (Jean Dujardin) com uma arma enfiada na própria boca, esboçando o suicídio, e a corrida desesperada de sua amiga Peppy (Bérénice Bejo) para salvá-lo, até que um "Bang!" surge na tela. Sim, ironia das ironias, O Artista é um filme mudo (ao menos na maior parte de sua narrativa), e a imagem que se segue à cartela é a do carro dirigido por Peppy batido contra uma árvore. Como na obra-prima de Billy Wilder, o suicídio imaginado não se consuma – o cinema falado influenciando o cinema mudo. Os apocalípticos estavam mesmo errados.
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