Quentin Tarantino tem uma
relação bastante prolífica com a História. De Cães de Aluguel (1992) a Kill Bill (2003/2004), tal relação se manteve restrita à História
do cinema, com o diretor atuando como um antropófago a devorar referências dos mais diversos gêneros cinematográficos (o filme de
kung fu e de gângster, o blaxploitation) para construir um estilo próprio,
facilmente reconhecível. A partir de Bastardos Inglórios (2009),
Tarantino lançou-se a uma aventura um pouco mais arriscada: apropriar-se também
dos ditos "filmes históricos" e, consequentemente, dirigir um olhar
"tarantinesco" a sociedades e acontecimentos do passado.
Django Livre é sua segunda obra nessa linha. Após o contundente grito de liberdade do cinema
em relação à tão cobrada fidelidade histórica, representado pelo assassinato de
Hitler no longa anterior, o cineasta, que já há algum tempo fazia westerns
disfarçados (Kill Bill: Vol. 2 e o próprio Bastardos
Inglórios), estreia de fato no gênero com um filme que adapta ao formato
"história de vingança" a dura e cruel realidade da escravidão negra
nos Estados Unidos. As visitas de Tarantino ao passado são sempre mediadas pelo
cinema já produzido sobre esse mesmo passado: se Bastardos era
basicamente um "filme de missão" situado na Segunda Guerra Mundial,
como tantos produzidos nas décadas de 1950 e 1960, Django Livre é
uma mistura de western spaghetti e blaxploitation, uma vez que acompanha, basicamente,
o nascimento de um herói típico do gênero que representou, nos anos 70, a
libertação imagética dos negros no cinema norte-americano – mais ou menos
correspondente à libertação de Django (Jamie Foxx) e Broomhilda (Kerry
Washington) de seus senhores (sem contar que o sobrenome da personagem de
Washington é Shaft, referência direta ao protagonista da célebre série de tv
que fez sucesso no auge do blaxploitation).
Django Livre pode soar repetitivo em alguns momentos, em sua excessiva
aproximação de Bastardos Inglórios – sem, no entanto, conseguir repetir o
impacto causado pelo final deste. Mas quando se mostra ambicioso
especificamente com o tema que aborda, propondo algumas questões mais sérias
sobre as relações entre escravos e senhores, dominantes e dominados, através do
personagem inusitado e politicamente incorreto de Samuel L. Jackson e de um
repugnante monólogo de Leonardo DiCaprio, Tarantino eleva seu filme a um
patamar inédito dentro de sua filmografia. Sob a máscara do pastiche, ele
constrói, talvez meio sem querer, um olhar sofisticado e problematizador sobre
a realidade histórica da escravidão.
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