Em sociedades que viveram sob ditaduras brutais, como as de
alguns países latino-americanos entre as décadas de 60 e 80 e europeus nos anos
20 e 30, por vezes surgem questionamentos sobre o quanto as pessoas realmente
sabiam das violências e arbitrariedades cometidas naqueles anos e sobre os
muitos comportamentos decorrentes desse conhecimento (ou da falta dele): a
alienação, a indiferença, a ambiguidade, a colaboração, a resistência etc. O Clã, novo filme do sempre
interessante Pablo Trapero, faz esse tipo de indagação ao contar a inusitada e
apavorante história dos Puccio, família de classe média na Argentina do início
dos anos 80 que sequestrava e matava poderosos empresários, enquanto embolsava
vultosas quantias de dinheiro com os resgates cobrados. No contexto em que se
passa a história do filme, de esfacelamento da ditadura militar daquele país, os horrores da casa dos Puccio e o incerto desconhecimento de alguns membros da família sobre o que acontecia no local servem de metáfora para o comportamento indefinido da maior parte da sociedade argentina durante os anos de autoritarismo. Trapero acerta em não explicitar essa discussão na narrativa de O Clã, em deixá-la subentendida, evitando
uma postura mais militante que descambaria para acusações contra os que nada
fizeram para impedir o horror: como nos contextos ditatoriais citados, são
muitos os fatores que compõem o comportamento, tão humano, do não envolvimento
com o que não lhe diz respeito diretamente, que vão do bem-estar econômico que
pode gerar conforto e acomodação ao medo de retaliações.
A seriedade e o potencial de polêmica que discussões desse
tipo carregam parecem mais que adequados ao cinema árduo e pesado de Trapero,
diretor acostumado a filmar histórias de figuras marginais em mundos cruéis e
violentos (seus últimos três trabalhos exemplificam bem essa predileção: Leonera, Abutres e Elefante Branco,
todos filmes duros sobre pessoas endurecidas pela vida). No entanto, apesar de
ser de fato sério, violento e político, O
Clã representa um bem-vindo respiro na carreira recente de Trapero, que sai
do registro puramente realista e adentra num cinema mais claramente de gênero,
com ritmo ágil, deliciosa trilha sonora de rocks
setentistas e até mesmo uma referência direta a Os Bons Companheiros, obra-prima de Martin Scorsese que se tornou
ícone do tipo de “filme de crime” com o qual O Clã busca dialogar (sem contar que o patriarca da família Puccio,
interpretado por Guillermo Francella, por vezes parece saído daquelas famílias
de psicopatas de slashers americanos
como O Massacre da Serra Elétrica e Quadrilha de Sádicos). Mesmo no uso de
seus conhecidos planos-sequência, Trapero parece mais solto, se divertindo sem
a pretensão de fazer de sua câmera em movimento um guia para o espectador por
mundos miseráveis.
Talvez caiba especular se essa mudança não resulta da
presença, na produção do filme, da El Deseo, empresa dos irmãos Almodóvar que
já produzira, no ano passado, Relatos
Selvagens, outro grande sucesso do cinema argentino. A deliciosa coletânea
de contos de Damián Szifrón, aliás, está muito mais próxima de O Clã que os trabalhos imediatamente
anteriores de Trapero: é difícil não lembrar das melhores histórias de Szifrón
diante do violento epílogo da saga dos Puccio, por exemplo, que o diretor filma
com uma ironia selvagem.
El Clan, 2015
Pablo Trapero
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