Frequentemente classificado como documentário, O Outro Lado é um caso excelente de
filme que borra as fronteiras entre realidade e ficção do que é mostrado na
tela de cinema. O diretor Roberto Minervini se propõe a acompanhar o cotidiano
de uma comunidade pobre na Louisiana, Estados Unidos, mas seu método parece
trafegar entre a observação e a encenação. Onde termina uma e começa a outra,
não sabemos. A impressão é de que, na maior parte do tempo, como no bósnio Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro
Velho (2013), de Danis Tanovic, os personagens estão encenando para a
câmera cenas de seu próprio cotidiano, algumas delas bastante íntimas. O que
não torna tais momentos menos “reais” – será que o ato de encenar enfraqueceria
a veracidade do registro? Penso que os avanços já ocorridos nas discussões
sobre o que define o documentário (como não lembrar do cinema de Eduardo
Coutinho?) deixam claro que não.
Pode-se questionar, a partir daí, se O
Outro Lado extrapola certos limites da ética em seu procedimento. Seria
correto pedir a figuras degradadas que encenem (logo, vivam) sua própria degradação
para a câmera? A resposta para isso não é fácil, mas, de qualquer maneira, está aí a fonte de grande parte do incômodo gerado pelo filme de Minervini. Ou
seja, o diretor italiano alcança os efeitos pretendidos, mas por métodos talvez
questionáveis.
Não me parece questionável, no entanto, o que Minervini faz na última parte do
filme, ao registrar (aqui ele parece de fato estar apenas acompanhando um grupo
de homens em seus afazeres e não pedindo que eles encenem para a câmera; mas,
novamente, há muita diferença?) a presença de um grupo paramilitar naquela
mesma região da Louisiana. O comportamento paranoico e odioso dos sujeitos, que
vomitam preconceito e agressividade sobretudo contra Barack Obama, é tão non-sense que poderia gerar algumas
risadas do lado de cá, tão acostumados que estamos em pintar os americanos de
cima como meio loucos. O problema é que convivemos com fenômeno semelhante no
Brasil de hoje. Diante da imagem de uma mulher com uma máscara de Obama
simulando sexo oral num homem, ou desses paramilitares explodindo um carro que
representaria o presidente norte-americano, é difícil não lembrar de casos recentes parecidos com esses ocorridos no Brasil
(como o do adesivo com Dilma Rousseff de pernas abertas, colado no local em que
é depositada a gasolina nos carros, os bonecos de Dilma e Lula enforcados, o
lançamento de panfletos com os dizeres “Petista bom é petista morto” no velório de um ex-presidente do Partido dos
Trabalhadores e outras coisas mais).
Minervini, num exercício bastante corajoso de reconhecimento do outro, foi da
Itália ao interior dos Estados Unidos para investigar o lado feio e degradado (O Outro Lado remete a Indomável Sonhadora, de Ben Zeitlin,
tanto na forte carga distópica que ambos carregam, por vezes não parecendo
estarem falando de uma realidade presente, mas sim de um futuro desolador,
quanto na capacidade de encontrar manifestações intensas de carinho em
ambientes profundamente hostis) da maior potência mundial. Mas acabou
realizando um filme que faz muito sentido para um público que, provavelmente,
ele não mirava: o brasileiro de 2015.
The Other Side, 2015
Roberto Minervini
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