Não faz muito tempo que, ao escrever sobre Batman e Batman – O Retorno, falei de minha brutal nostalgia, num momento em
que me aproximo do 30º aniversário, com os anos 90, década em que cresci. Mas
se os filmes de Tim Burton sobre o herói de Gotham City remetiam à lembrança de
assisti-los na infância, entre 1989 e 1992, Estranhos Prazeres (1995), de Kathryn Bigelow, que vi pela primeira
vez agora, é a própria década de 1990.
Isso porque o filme articula com imensa competência em sua narrativa uma série
de elementos profundamente associados àqueles anos, como o espancamento de
Rodney King (ocorrido em 1991) e o impacto causado por esse fato sobre a imagem
pública da polícia de Los Angeles, a ascensão do gangsta rap, e, sobretudo, a apreensão com a virada do milênio.
Esse último aspecto pode soar ridículo hoje, para quem não
viveu a virada de 1999 para 2000, com matérias recorrentes em TVs e jornais
sobre as profecias apocalípticas de Nostradamus e o medo do “bug do milênio”,
mas, em 1995, fazia muito sentido localizar dali a quatro anos uma trama de
ficção-científica distópica como a de Estranhos
Prazeres. E, como grande representante do gênero que é, o filme de Bigelow
usa o futuro para falar do presente, de uma sociedade atravessada pelo racismo,
institucionalizado pela brutalidade policial. Nesse sentido, ele se mostra muito potente politicamente,
com sua narrativa se encaminhando para solucionar de forma bastante radical a
tensão racial que permeava Los Angeles na década de 1990. Infelizmente, no
entanto, Bigelow e seus roteiristas (James Cameron e Jay Cocks) recuam no
último momento, optando por apaziguar a explosão de ódio de oprimidos contra
opressores, ao introduzir em cena um representante do lado honesto das
instituições, cuja presença e ação pontual são suficientes para pôr fim a um
conflito complexo e enraizado socialmente.
Ainda que os protagonistas de Estranhos Prazeres (Angela Bassett e Ralph Fiennes) realmente merecessem
um final feliz, este poderia se concretizar de outra forma, dentro da
perspectiva de revolução social com a qual o filme flerta desde seu início. É
possível refletir, a partir daí, sobre os limites da crítica política no cinema
de gênero, apontados, por exemplo, pelo teórico marxista Fredric Jameson. Será
que, construído fora de esquemas narrativos genéricos, o roteiro de Estranhos Prazeres toparia soluções
políticas mais radicais? Provavelmente sim. Por outro lado, se tivesse
realizado um filme de ruptura estética, narrativa e política, será que Bigelow
conseguiria se comunicar tão diretamente e de maneira tão eficiente com o
público que viveu os anos 90? E se a escolha do final é mesmo de se lamentar, por
soar incoerente com o que fora feito até ali (lembrando um pouco o que ocorre
na conclusão da trilogia Matrix), é
fato que ela não apaga totalmente a força política do filme, que tem cenas
impactantes de denúncia do racismo, como a do assassinato do rapper Jeriko One e a do espancamento da
personagem de Bassett – que, claro, remete ao caso de Rodney King.
E é preciso reconhecer que Estranhos Prazeres é muito rico nesse próprio diálogo que
estabelece com o cinema genérico. Sua filiação a gêneros é, na verdade, dupla, uma
vez que também carrega algumas características do noir, como a presença de uma figura feminina (Juliette Lewis) que
desnorteia o protagonista, a moral duvidosa e a colocação social marginal deste
último e a trama policial complexa, por vezes confusa, cujos pequenos detalhes dificilmente
são captados num primeiro contato com o filme. Nessa intersecção à lá Blade Runner, Bigelow constrói uma
representação acurada dos anseios políticos e existenciais de uma década, o que
não é pouco. É difícil acreditar que qualquer cineasta de vanguarda conseguisse
resultado parecido.
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