No livro É isto um
homem?, Primo Levi narrou o processo de desumanização sofrido pelos
prisioneiros de campos de concentração e extermínio durante a Segunda Guerra
Mundial (o próprio escritor italiano foi uma dessas vítimas): primeiramente,
lhes eram tirados seus pertences, depois, seus nomes (passavam a ser
reconhecidos por números), e, em seguida, na luta desesperada por
sobrevivência, eram levados a cometer atos atrozes. Alguns deles inclusive tomaram parte no
assassinato de seus iguais: foi o caso dos kapos
e dos sonderkommandos, judeus colocados
pelos nazistas em posições de poder sobre outros prisioneiros, vigiando-os, punindo-os
e mesmo conduzindo-os à morte nas câmaras de gás.
Depois do impressionante e incontornável documentário Shoah (1985), de Claude Lanzmann, O Filho de Saul é provavelmente o filme
que melhor se aproxima desse relato do horror vivido por Levi. Seu
protagonista, Saul Ausländer (Géza Röhrig), é um sonderkommando, o que, de partida, já diferencia a estreia na
direção de László Nemes da enxurrada de filmes sobre o Holocausto produzidos por
aí. Não foram muitas as vezes em que o cinema destacou, na máquina de
extermínio alemã, personagens nessa posição, judeus que, vítimas, exerciam
também o papel de algozes (na ficção, me lembro de apenas um caso relevante, o
dramalhão Kapò, de Gillo Pontecorvo).
Saul leva prisioneiros até a câmara de gás, recolhe as roupas deixadas por eles
e despacha seus cadáveres para os fornos crematórios. Não questiona o trabalho
que é levado a realizar, nem olha para os lados. Não busca ver a imagem
completa do horror em que está inserido. Não enxergar esse todo significa
manter algum grau de sanidade, necessária para a realização de um ofício que
garante sua sobrevivência até o fim de cada dia. Nesse sentido, a opção de
Nemes por manter a câmera sempre próxima ao protagonista, com reduzidíssima
profundidade de campo e desfocando tudo que o cerca, coloca o espectador na
mesma posição ético-moral de Saul.
Ao mesmo tempo, isso parece ter relação com todo um debate desenvolvido,
há algumas décadas, sobre a possibilidade de representação do Holocausto nas
artes. Se Lanzmann, em Shoah,
escolheu não encenar, apenas colher depoimentos (gerando um filme de mais de
nove horas de relatos aterradores), Nemes deixa a morte fora de foco, os
cadáveres sem rosto, e não ousa entrar na câmara de gás junto aos prisioneiros
como fez Spielberg em A Lista de
Schindler. Ainda assim, muito mais que em Schindler ou O Pianista,
e menos talvez apenas que em Shoah, a
morte está absolutamente presente em O
Filho de Saul. Presente não só como uma ameaça constante aos personagens
que aparecem na tela (“já estamos todos mortos”, diz Saul em certo momento, o
que permitiria inferir que o campo de extermínio é o inferno), mas como um
estado perpétuo que rege suas existências. O
Filho de Saul cheira a morte, como provavelmente não se sentia num filme
desde Vá e Veja (1985), de Elem
Klimov.
Em meio ao horror absoluto, Saul se agarra ao
desejo de enterrar o cadáver de seu suposto filho, descoberto em meio às
vítimas do gás, de acordo com os rituais judaicos. É o fio de humanidade, de
dignidade, de civilidade que lhe resta, diante da barbárie. É sua arma contra a
desumanização completa, mais potente que as armas de fogo tão necessárias a seus
companheiros de prisão para iniciarem uma revolta, condenada ao fracasso,
contra os alemães. Pois se trata, aí, não só de derrotar o inimigo para continuar
vivendo, mas de continuar sendo homem por meio da permanência de laços afetivos
e culturais.
Saul Fia, 2015
László Nemes
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