Pouco mais de 20 anos depois de Cães de Aluguel, Quentin Tarantino volta a confinar um grupo de
personagens num espaço fechado tentando descobrir quem ali não é o que diz ser.
Mas se diante de Os Oito Odiados é inevitável
lembrar do filme de estreia do diretor, ainda mais quando se vê em cena Tim
Roth, Michael Madsen e alguns litros de sangue, o grande deleite aqui está na
referência, um tanto inusitada, à obra-prima do horror O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. O isolamento dos
personagens pela neve e frio implacáveis, o uso por eles de uma determinada
estratégia para lidar com tais condições climáticas e evitar que alguém se
perca em meio à nevasca, além, claro, da presença de Kurt Russell, trazem o
magnífico filme de Carpenter à mente. Mas é justamente naquilo que a princípio
gruda Os Oito Odiados em Cães de Aluguel, a estrutura narrativa,
que o novo Tarantino mais remete a O
Enigma de Outro Mundo. É que para além de descobrir quem ali esconde sua
verdadeira identidade, premissa comum aos três filmes, há em Os Oito Odiados um monstro entre os humanos,
que só ao final se revela por completo. O embate com esse monstro pelos dois
últimos sobreviventes de sua fúria e a cena que se segue, encerrando o filme,
vêm diretamente de Carpenter.
É interessante como, ao usar essa referência a O Enigma de Outro Mundo para
caracterizar o vilão do filme, Tarantino consegue proteger Os Oito Odiados de possíveis, e prováveis, acusações de misoginia. Trata-se,
afinal, do diálogo com um clássico oitentista do cinema de horror, antes de
qualquer comentário social. Mas, mesmo neste último campo, a análise pede um
pouco mais de ponderação. É que quando comenta a América, e na verdade ele faz
isso durante praticamente todas as quase três horas de duração de seu filme,
Tarantino é implacável. Se na superfície está o debate sobre o racismo num país
recém-saído da escravidão, marcando assim uma continuidade com Django Livre, logo abaixo, mas não menos
importante, está a caracterização desse país como uma espécie de inferno na
Terra, em que o ódio ao diferente prevalece sobre qualquer possibilidade de
empatia.
Daí, negros, mulheres, mexicanos e índios – que
não aparecem no filme, mas são citados como vítimas das ações de um dos
protagonistas – são perseguidos, xingados, vilipendiados e mortos na versão
tarantinesca da tal “terra das oportunidades”. Daí, como a violência e as
mentiras do personagem de Samuel L. Jackson são justificadas pela condição dos
negros na América, sobretudo nos estados do sul (“Você não faz ideia do que é
ser negro na América”, diz ele a Kurt Russell num determinado momento), o
comportamento odioso do “monstro” de Os
Oito Odiados também tem sua razão de ser. Como seu colega de O Enigma de Outro Mundo, no fim das
contas, ele só quer sobreviver numa terra que lhe é completamente hostil.
The Hateful Eight, 2015
Quentin Tarantino
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