segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Garota Exemplar


Há um quê de Hitchcock em Garota Exemplar. Não só por se tratar de um suspense classudo com personagens que não são o que parecem ser; não só pelo protagonista acusado de um crime que talvez não tenha cometido (mote clássico de muitos dos filmes do mestre maior do cinema). A aproximação se dá também num nível ainda mais profundo.

Ao dedicar algumas páginas do livro O olhar e a cena à análise de Um Corpo que Cai, obra-primíssima de Hitch, Ismail Xavier destaca o procedimento metalinguístico do filme, revelado na mise-en-scène construída pelo personagem Elster, que funcionaria como metáfora para a atividade do roteirista/diretor de um melodrama clássico: como um grande cineasta – como o próprio Hitchcock – o suposto marido da personagem de Kim Novak cria e conduz com mão firme personagens e situações, permanecendo fora de cena na maior parte do tempo.

Em Garota Exemplar, Amy Dunne (Rosamund Pike, maravilhosa) exerce papel semelhante. Ela roteiriza e encena sua própria história, dirigindo também os outros "atores" que a cercam sem que eles tomem conhecimento de que estão sendo conduzidos pela mão invisível da personagem. Na primeira metade do filme, aliás, nós, espectadores, também temos o olhar direcionado por Amy: enxergamos em Nick Dunne (Ben Affleck, ótimo) o marido violento e potencialmente assassino que ela deseja que enxerguemos. Já na segunda metade, o mecanismo é revelado e nos deleitamos em acompanhar o talento espantoso dessa formidável metteuse-en-scène.

Nesse sentido, se considerarmos que Garota Exemplar é também, como Um Corpo que Cai, um comentário sobre a construção dramática de uma narrativa cinematográfica, é possível arriscar a interpretação de que sua primeira parte representa o cinema narrativo clássico, marcado pela invisibilidade do procedimento de feitura do filme, enquanto a segunda é cinema pós-moderno dos melhores, com o processo de montagem do drama sendo explicitado ao espectador.

Digressões possivelmente equivocadas à parte, David Fincher realizou, como dito lá em cima, um suspense classudo com personagens fascinantes porque complexos. E que ainda esbofeteia a imprensa sensacionalista sem o menor pudor. Só por isso já merece ser chamado de sensacional – já a aproximação com Hitchcock dá a ele, sem qualquer dúvida, o título de obra-prima.

Garota Exemplar 
Gone Girl, 2014
David Fincher

2 comentários:

Anônimo disse...

Na minha opinião, o melhor filme do ano até agora.

http://filme-do-dia.blogspot.com.br/

Wallace Andrioli Guedes disse...

É o meu favorito também, por enquanto.