Há um quê de Hitchcock em
Garota Exemplar. Não só por se tratar de um suspense
classudo com personagens que não são o que parecem ser; não só pelo
protagonista acusado de um crime que talvez não tenha cometido (mote clássico
de muitos dos filmes do mestre maior do cinema). A aproximação se dá também num
nível ainda mais profundo.
Ao dedicar algumas
páginas do livro O olhar e a cena à análise de Um
Corpo que Cai, obra-primíssima de Hitch, Ismail Xavier destaca o
procedimento metalinguístico do filme, revelado na
mise-en-scène construída pelo personagem Elster, que
funcionaria como metáfora para a atividade do roteirista/diretor de um
melodrama clássico: como um grande cineasta – como o próprio Hitchcock – o
suposto marido da personagem de Kim Novak cria e conduz com mão firme
personagens e situações, permanecendo fora de cena na maior parte do tempo.
Em Garota
Exemplar, Amy Dunne (Rosamund Pike, maravilhosa) exerce papel
semelhante. Ela roteiriza e encena sua própria história, dirigindo também os
outros "atores" que a cercam sem que eles tomem conhecimento de que
estão sendo conduzidos pela mão invisível da personagem. Na primeira metade do
filme, aliás, nós, espectadores, também temos o olhar direcionado por Amy:
enxergamos em Nick Dunne (Ben Affleck, ótimo) o marido violento e
potencialmente assassino que ela deseja que enxerguemos. Já na segunda metade,
o mecanismo é revelado e nos deleitamos em acompanhar o talento espantoso dessa
formidável metteuse-en-scène.
Nesse sentido, se
considerarmos que Garota Exemplar é também, como Um
Corpo que Cai, um comentário sobre a construção dramática de uma
narrativa cinematográfica, é possível arriscar a interpretação de que sua
primeira parte representa o cinema narrativo clássico, marcado pela
invisibilidade do procedimento de feitura do filme, enquanto a segunda é cinema
pós-moderno dos melhores, com o processo de montagem do drama sendo
explicitado ao espectador.
Digressões possivelmente equivocadas à parte, David Fincher realizou,
como dito lá em cima, um suspense classudo com personagens fascinantes porque
complexos. E que ainda esbofeteia a imprensa sensacionalista sem o menor pudor.
Só por isso já merece ser chamado de sensacional – já a aproximação
com Hitchcock dá a ele, sem qualquer dúvida, o título de obra-prima.
2 comentários:
Na minha opinião, o melhor filme do ano até agora.
http://filme-do-dia.blogspot.com.br/
É o meu favorito também, por enquanto.
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