O Ato de Matar é o filme mais difícil de ser avaliado entre os que assisti nessa edição do Festival do Rio. O exaustivo documentário do diretor norte-americano Joshua Oppenheimer parte da proposta inusitada de reconstituir o massacre de opositores políticos ocorrido na Indonésia, em meados da década de 1960, a partir da visão dos próprios algozes, membros do crime organizado que foram mobilizados na época pelo brutal regime militar que se instalara no poder para a execução de tal tarefa. Para além das questões éticas, geradoras de todo um complexo debate em torno da opção de Oppenheimer por dar voz a monstros que passam duas horas e meia zombando de suas vítimas e se vangloriando de seu passado "heróico", O Ato de Matar peca por ter uma estrutura narrativa repetitiva, calcada sobre sucessivas encenações pelos assassinos dos assassinatos cometidos, e também por vez ou outra focar em ações desimportantes de determinados personagens (como ao subitamente passar a acompanhar o engajamento de um dos criminosos na vida política). Ainda assim, o resultado final alcançado é impressionante, especialmente por fazer desmoronar diante da câmera a imagem aparentemente desprovida de remorso do protagonista Anwar Congo, numa catarse invertida que faz valer todo o filme - e todo o projeto, na verdade, ao conseguir imprimir em figura tão horrenda algum senso de compreensão da alteridade e de reconhecimento dos crimes que cometeu. O epílogo de O Ato de Matar é daqueles momentos capazes de restituir no espectador a crença na força transformadora da arte.
O Rei da Fuga, longa de 2009 do diretor francês Alain Guiraudie - presente no Festival para o lançamento de seu mais recente trabalho, o elogiadíssimo Um Estranho no Lago (que não vi, infelizmente) -, é uma agradabilíssima comédia dramática gay. Guiraudie parece ser dono de uma sensibilidade única para abordar tal universo, tratando com imenso carinho seus nada idealizados personagens, homens de meia-idade ou já na terceira idade em geral feios e de corpos não-atléticos, mas ainda assim dispostos a novas descobertas sexuais e sentimentais. O exemplo maior é, claro, o protagonista Armand (o ótimo Ludovic Berthillot), vendedor que, com pouco mais de quarenta anos, passa a questionar sua homossexualidade ao iniciar inusitado relacionamento com uma adolescente problemática (Hafsia Herzi). Despudorado e debochado ao extremo, mas nunca perdendo a delicadeza, O Rei da Fuga lembra o cinema que Almodóvar fazia na década de 1980, ainda que sem seu visual espalhafatoso característico.
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