A capacidade de contar histórias e cavar emoções no espectador prescindindo quase totalmente do recurso da palavra formata uma especificidade do cinema enquanto arte e isso sempre me pareceu muito bonito. Por isso, em teoria, posso dizer que acho o cinema mudo fascinante. No entanto, confesso que, na prática, tenho uma certa dificuldade com esse tipo de filme. Como filho legítimo de um mundo em que somos educados para a preguiça intelectual, reconheço um certo apego aos sons diegéticos, diálogos e a todos os outros efeitos apropriados e reproduzidos pelas produções cinematográficas ao longo do tempo. Obviamente, isso não é algo que costumo falar por aí, sem pudores, assim como evito confessar que, em decorrência dessa minha preguiça para com os filmes não-falados, até hoje não assisti a alguns clássicos do porte de A General e A Turba. Vergonhoso, enfim.
Bem, é lógico que, diante dessa condição de quase pseudo-cinefilia em que assumo me encontrar, assistir a O Artista foi, antes de qualquer coisa, um enorme exercício de auto-culpabilização, já que o filme do francês Michel Hazanavicius é uma linda homenagem ao cinema mudo. Mas, felizmente, não só isso. É também uma obra com vida própria, que encanta por sua simplicidade e capacidade de brincar, com bastante desenvoltura, com a linguagem do cinema. Há uma cena maravilhosa envolvendo o uso de sons diegéticos, por exemplo, e Hazanavicius consegue fazer da gramática dos filmes mudos uma ferramenta para contar uma bonita história, que é o mais importante, no fim das contas, já que era exatamente isso que faziam os filmes que O Artista busca celebrar. Nesse sentido, vale destacar o uso brilhante das cartelas com palavras em um momento particularmente dramático da narrativa, em que uma onomatopeia surge para nos lembrar das possibilidades polissêmicas do cinema não-sonoro. Pequenos rompantes de genialidade que fazem saltar aos olhos a sofisticação do trabalho de Hazanavicius.
Se me envergonho de minhas dificuldades com filmes mudos, o mesmo não pode ser dito quanto à minha resistência ao 3D. Tida por muitos como a salvação do cinema diante de "ameaças" como a internet, tal tecnologia costuma me remeter à ideia do cinema como puro entretenimento, já que supostamente permite ao espectador "entrar" no filme que está assistindo. Mas por que iria querer ver coisas saindo da tela, se tudo o que me interessa está lá dentro?
No entanto, aos poucos alguns gigantes da cinematografia mundial vêm se apropriando da arma do "inimigo" e experimentando o 3D enquanto mais um passo na evolução da linguagem cinematográfica. Wim Wenders e Werner Herzog foram os primeiros, com os documentários Pina (que assisti, infelizmente, em cópia 2D) e A Caverna dos Sonhos Esquecidos, e agora é a vez do grande Martin Scorsese se aventurar pelo formato, com A Invenção de Hugo Cabret. Na verdade, trata-se de uma dupla aventura para o cineasta ítalo-americano, já que esta é também sua primeira incursão num cinema mais voltado para o público infanto-juvenil, algo bastante distante da violência urbana de obras como Taxi Driver, Touro Indomável, Os Bons Companheiros e Os Infiltrados. Bem, mas a grande (e agradável) surpresa de Hugo é que Scorsese fez um filme sobre o cinema. Ou melhor, sobre o amor por esta arte, amor que parece ser o motor da carreira e da vida desse cineasta. A jornada na qual embarcam o protagonista e sua única amiga os leva à descoberta do mundo de fantasia dos primórdios da produção cinematográfica, mais especificamente à obra de Georges Mélies. E como este era um ilusionista que viu nos filmes a possibilidade de contar histórias recheadas de magia e fantasia, nada mais justificável que Scorsese use o 3D para se remeter a essa atmosfera de "fábrica de sonhos" que o cinema possuía para as primeiras gerações que tiveram contato com ele. O resultado é... mágico. Coisas saindo da tela? Diante do 3D, como não pensar na reação dos primeiros espectadores de A Chegada do Trem na Estação, dos irmãos Lumiére? No fim das contas, da mais básica gramática dos filmes mudos à mais avançada tecnologia 3D, Michel Hazanavicius e Martin Scorsese só desejam que não deixemos de amar o cinema.
The Artist, 2011
Michel Hazanavicius
Hugo, 2011
Martin Scorsese
P.S.: por falar em amor pelo cinema, a Liga dos Blogues Cinematográficos publicou o resultado de seu prêmio anual, o Alfred. Vale a pena conferir quem foram os melhores do ano passado para esse bando de apaixonados (eu entre eles).
2 comentários:
Merecidas 5 estrelas para "O Artista"
Todos parecem comparar estes dois filmes nesta temporada. Não só por serem os grandes concorrentes do Oscar, mas pela metalinguagem. Ainda não vi nenhum dos dois, mas estou muito ansioso.
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