Numa das primeiras cenas de Chatô – O Rei do Brasil, Assis Chateaubriand aparece travestido de
índio, devorando um pedaço de carne humana enquanto olha, desafiador,
diretamente para o espectador. Essa será a postura assumida pelo personagem no
restante da narrativa desse infame filme de Guilherme Fontes, que finalmente
chega aos cinemas após quase 20 anos do início de sua produção. Apesar das
compreensíveis comparações com Cidadão
Kane – Chateaubriand é, como Kane, um magnata da mídia propenso ao
sensacionalismo e com relações intrínsecas, muitas vezes espúrias, com a política –,
o Chatô canibal de Fontes está mais para Venceslau Pietro Pietra, vilão do Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade. Ambos
são antropófagos no pior sentido do termo, adeptos de uma devoração que destrói
quem atravessa seus caminhos, “gigantes” movidos a sexo, dinheiro e poder.
Já o tom de deboche de Chatô - O Rei do Brasil remete não só a essa obra-prima do Cinema Novo, mas também a Carlota Joaquina, Princesa do Brasil,
marco da “retomada” do cinema nacional nos anos 90, época em que Fontes
filmou. Aliás, a pretensão de, por meio da sátira a "grandes personagens",
explicar o país, aproxima Chatô
ainda mais dessas duas matrizes – o Cinema Novo pós-tropicalista de Joaquim
Pedro e a comédia histórica/histérica de Carla Camurati –, o que, em tempos de
filmes brasileiros minimalistas, íntimos e muito preocupados com o micro (no qual
por vezes se projeta o macro, é verdade, como nos recentes O Som ao Redor e Que Horas Ela Volta?, mas ainda assim mantendo o foco nas pequenas histórias), poderia soar anacrônico, envelhecido. Isso não acontece.
A estrutura complexa da narrativa, com pelo menos três instâncias de narração (o presente de Chateaubriand, no hospital, a alucinação com seu julgamento num programa de TV à lá Chacrinha e as lembranças do passado, que também se dão... dentro do julgamento?), é arriscada, mas muito bem construída, surpreendentemente coesa. Ela mantém o filme de pé. E a completa despreocupação com a precisão histórica, misturando tempos e personagens num contar agônico e alucinante (o que é absolutamente condizente com as condições de saúde de seu protagonista-narrador), funciona como uma espécie de exortação a um cinema biográfico e/ou político menos careta e oficialesco, mais livre e safado. Vindo diretamente do passado em que foi concebido e filmado, Chatô se coloca, portanto, como um filme para o futuro. Oxalá seja visto, discutido, compreendido e tomado como um exemplo (estético, narrativo) possível a ser seguido.
A estrutura complexa da narrativa, com pelo menos três instâncias de narração (o presente de Chateaubriand, no hospital, a alucinação com seu julgamento num programa de TV à lá Chacrinha e as lembranças do passado, que também se dão... dentro do julgamento?), é arriscada, mas muito bem construída, surpreendentemente coesa. Ela mantém o filme de pé. E a completa despreocupação com a precisão histórica, misturando tempos e personagens num contar agônico e alucinante (o que é absolutamente condizente com as condições de saúde de seu protagonista-narrador), funciona como uma espécie de exortação a um cinema biográfico e/ou político menos careta e oficialesco, mais livre e safado. Vindo diretamente do passado em que foi concebido e filmado, Chatô se coloca, portanto, como um filme para o futuro. Oxalá seja visto, discutido, compreendido e tomado como um exemplo (estético, narrativo) possível a ser seguido.
Guilherme Fontes
2015
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