O
personagem que Clint Eastwood interpreta em Gran Torino não é muito diferente das figuras às quais o velho
ator/diretor deu vida ao longo de sua carreira. Rabugento, amargurado e
conservador, Walt Kowalski se parece tanto com o Frankie Dunn de Menina de Ouro quanto com o xerife Red
Garnett de Um Mundo Perfeito ou com o
militar Highway de O Destemido Senhor da
Guerra, por exemplo. Mas é sobretudo a Harry Calahan, policial que Eastwood
imortalizou numa franquia de cinco filmes (Perseguidor
Implacável, Magnum 44, Sem Medo da Morte, Impacto Fulminante e Dirty
Harry na Lista Negra), que o velho Kowalski parece remeter, com sua postura
de valentão e um aparentemente incorrigível racismo.
E
é justamente na lembrança de Dirty Harry que reside a maior força de Gran Torino. Isso porque o filme
funciona basicamente como a desconstrução de uma visão de mundo cuja melhor
encarnação é exatamente o personagem durão e preconceituoso que Eastwood se
acostumou a interpretar. Desconstrução que começa nos primeiros contatos com a
família de imigrantes do povo hmung, agora parte da vizinhança, e que se completa
no maravilhoso epílogo. Se no olhar potente para os efeitos da violência sobre
o homem Gran Torino não destoa do
melhor cinema de Eastwood-diretor, na solução encontrada para lidar com essa
violência sim: enquanto no final da obra-prima Os Imperdoáveis, por exemplo, William Munny recorria mais uma vez às
armas resolver seus problemas, como uma maldição da qual não conseguia escapar,
aqui Kowalski/Dirty Harry se desarma (literalmente) para derrotar seus
inimigos. Gran Torino é assim um
passo ainda mais além na já corajosa releitura do mito do herói americano feita
em Os Imperdoáveis.
Mas o que há de mais
bonito nesse processo de desconstrução do mito é o respeito com que Eastwood e
o roteirista Nick Schenk tratam seus personagens. Gran Torino é, acima de tudo, um filme sobre a descoberta da
alteridade, mas que evita submeter seus complexos personagens a transformações
radicais. Ao final, Walt Kowalski continua sendo um velho conservador e
racista, e é justamente por reconhecer isso que ele sai de cena, como
representante da Velha América que é, para abrir espaço para a Nova América,
encarnada no jovem hmung Thao. Nova América na qual Kowalski aprendeu a
acreditar, mas da qual sabe não fazer parte.
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