domingo, 31 de maio de 2009

[s. bernardo]

S. Bernardo
S. Bernardo, 1972
Leon Hirszman


Posso estar falando uma bobagem, mas vendo S. Bernardo, belíssima adaptação de Leon Hirszman do livro homônimo de Graciliano Ramos, não consegui deixar de pensar no recente, e fabuloso, Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson. É lógico que são filmes feitos por cineastas de formações distintas, originários de contextos bastante diferentes (Hirszman vindo do Cinema Novo, com uma bagagem de militante e intelectual comunista, e Anderson surgindo no cinema independente norte-americano da década de 1990) e separados no tempo por mais de trinta anos.
No entanto, há algo nas duas narrativas, na forma como seus diretores tratam seus protagonistas (Paulo Honório e Daniel Plainview), no uso da trilha sonora como quase um personagem à parte, que faz com que S. Bernardo e Sangue Negro possam ser vistos, mesmo que num devaneio meu, como parentes próximos. Aliás, me parece que é justamente ligando Honório a Plainview que as semelhanças se tornam mais claras. Ambos são homens ambiciosos e embrutecidos pela vida, espécie de "proto-empreendedores", que passam por cima de qualquer coisa (ou qualquer um) que os ameace, que coloque em risco seus projetos. Ambos passam, ainda, por um processo de "coisificação": tanto Honório quanto Plainview, em suas respectivas jornadas de êxito financeiro, perdem a já pequena porção de humanidade que possuíam - sem contar uma última, mas não menos importante, semelhança: o fato de os dois personagens serem vividos por intérpretes brilhantes, em momentos de absoluta inspiração (enquanto Daniel Day-Lewis constrói com sua costumeira minúcia a figura ao mesmo tempo asquerosa e fascinante de Daniel Plainview, Othon Bastos, muito mais contido, cria um Paulo Honório essencialmente brutalizado, quase uma rocha, sempre ameaçador e dotado de uma força que parece inabalável em sua incomunicabilidade com quem o cerca). É com brilhantismo que Hirszman e P. T. Anderson voltam seus olhos para um passado recente para escancarar as vísceras do capitalismo, e dos efeitos deste sobre aqueles que o abraçam de forma mais veemente.
E não é de se estranhar, portanto, que S. Bernardo possua, ainda hoje, a força absurda que possui. A sensibilidade e especialmente a imensa serenidade de Hirszman ao filmar Graciliano Ramos geram um filme seco e brutal como o Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, porém dotado de uma força poética que o longa de 1963 não possuía - que é reforçada pelo belo uso que Hirszman faz tanto dos cantos do trabalho quanto da trilha de Caetano Veloso. Um filme sóbrio, soturno e extremamente triste que, em seu silêncio quase absoluto, tem muito a dizer. Exatamente como Sangue Negro.

3 comentários:

Bruno disse...

Não conheço ainda "S. Bernardo", mas pela comparação fiquei muito curioso. Muitos filmes, após 30 anos de terem sido feitos, perdem muito de sua qualidade, mas se este está no nivel de sobriedade de "Sangue Negro", belo filme contemporâneno, então é porque vale a conferida. Acabou de entrar na minha lista de "filmes nacionais a conferir". Abraço!

Rafael Carvalho disse...

Nossa, essa ligação do filme do Hirzman com o Sangue Negro me deixou com mais vontade ainda de conferir o longa brasileiro, mas nunca achei para assistir.

Wallace Andrioli Guedes disse...

Como disse, Rafael, essa foi uma semelhança que eu vi, não sei se faz muito sentido, se foi uma grande viagem minha ... de qualquer forma, assista o filme, vale a pena. Mas é difícil de conseguir mesmo, só consegui em uma locadora no Rio.