O Homem do Pau Brasil
O Homem do Pau Brasil, 1981
Joaquim Pedro de Andrade
Mais de 20 anos antes de Todd Haynes colocar Cate Blanchett para interpretar uma das facetas de Bob Dylan em Não Estou Lá, Joaquim Pedro de Andrade já ousava ao biografar Oswald de Andrade em O Homem do Pau Brasil, tendo uma atriz (Ítala Nandi) interpretando um dos componentes da personalidade do escritor/poeta/dramaturgo/filósofo (o "lado masculino" de Oswald é vivido por Flávio Galvão). De uma certa forma, o diretor retoma aqui o cinema antropofágico de seu maior clássico, Macunaíma, para apresentar, de uma forma nada didática e absolutamente criativa, a vida de Oswald: assim como na adaptação da rapsódia de Mário de Andrade, a prática antropofágica perpassa a narrativa, e exerce um papel fundamental em seu epílogo. Mais do que uma biografia, O Homem do Pau Brasil é uma leitura da trajetória do modernista através de sua própria obra, tendo como óbvio motor, a antropofagia. Não é um filme perfeito como Macunaíma, nem impactante como Os Inconfidentes, mas é de uma ousadia admirável, um tipo de experimentalismo totalmente coerente tanto com a figura (ou figuras) de Oswald de Andrade, quanto com o próprio cinema de Joaquim Pedro, nunca acomodado, sempre disposto a ser ácido e crítico utilizando-se de novos referenciais estéticos. É o filme- testemunho do cineasta, já que este morreria 7 anos depois, sem conseguir concluir novos projetos, e ao mesmo tempo é dedicado a Glauber Rocha (falecido no mesmo ano de 1981 em que O Homem do Pau Brasil fora lançado), uma espécie de Oswald de Andrade do Cinema Novo brasileiro. Funciona perfeitamente em ambos os casos.
Ainda estou para ser convencido acerca da qualidade do cinema de Michael Winterbottom. Um dos mais badalados cineastas do cinema contemporâneo, o inglês simplesmente não conseguiu me conquistar em nenhum dos quatro filmes seus que assisti: Neste Mundo, Código 46, O Preço da Coragem (talvez o melhor deles) e esse Caminho para Guantánamo. Essa aqui é, aliás, uma de suas mais elogiadas e premiadas obras, o que me parece um mero reflexo do momento político em que foi feita. Não que Caminho para Guantánamo seja um filme ruim, pelo contrário, é razoavelmente envolvente, e conta com algumas cenas bastante marcantes. No entanto, Winterbottom parece disposto a se boicotar a todo momento, exagerado na estética seca e realista, já tão batida para os filmes ocidentais que abordam o Oriente Médio, e ainda escorrega feio ao misturar sua narrativa dramatizada, já excessivamente "realista", com um tom documental, ao colocar os sujeitos reais que inspiraram o filme dando depoimentos a todo momento, depoimentos esses que só servem para reiterar o que as imagens da câmera de Winterbottom haviam acabado de mostrar. Falta sensibilidade e, principalmente, sutileza para o inglês alcançar verdadeiramente o posto de um dos cineastas mais relevantes da atualidade. Como está agora, é muito mais produto de um hype excessivo do que de talento verdadeiro (digo isso, obviamente, baseando-me nos filmes de Winterbottom que assisti até o momento).
Realizar um filme sobre as disputas de terra entre tribos indígenas e latifundiários no Brasil sem descambar para discursos inflamados e posturas panfletárias não é uma tarefa fácil. Só por conseguir isso, sem, no entanto, ficar necessariamente "em cima do muro", Terra Vermelha já é um trabalho admirável do diretor italiano Marco Bechis. No filme, os índios da tribo Guarani-Kaiowá não são meras vítimas nas mãos de gananciosos proprietários de terra, mas também não são selvagens bárbaros atrasados, como alguns setores de nossa sociedade buscam pintá-los. São seres humanos de carne-e-osso, membros de uma comunidade que vivem no limiar entre a aculturação e a sobrevivência de seus costumes, tendo de sobreviver sob os limites impostos pela "civilização". Enquanto isso, o "outro lado", encarnado na figura sempre talentosa de Leonardo Medeiros, também não se resume a fazendeiros sem coração, que desprezam a cultura indígena e armam tramas maquiavélicas para destruí-la: o personagem de Medeiros talvez seja a síntese perfeita de uma grande parte de nossa sociedade, que vê nos índios figuras arcaicas, com as quais até se pode coexistir, desde que esses mantenham distância, permaneçam nas reservas a eles determinadas, não "arranjem confusão" com os brancos. A dificuldade desses setores em entender a alteridade das culturas indígenas, e as dificuldades destas de inserirem-se na "sociedade civilizada", é exacerbada em uma belíssima cena, em que Medeiros discute com o líder dos Guarani-Kaiowá acerca de seu direito à posse daquela terra, na qual várias gerações de sua família trabalhou para garanti-lo. É uma cena reveladora, poderosa, e que impregna o espectador do impasse de tal situação. Impasse que, mesmo existindo, não impede que Bechis tome o lado, por mais dúbia e moderada que essa tomada de posição possa ser, dos indígenas. E aumenta aqui, a necessidade de admirar Terra Vermelha: se já fora sensato o bastante para evitar maniqueísmos e lugares-comuns, é também suficientemente corajoso para escolher um lado, e para firmar um posicionamento (e o belíssimo final só serve para coroar essa escolha).
Um dos maiores clássicos do cinema de horror, Frankenstein, dirigido por James Whale (aquele cineasta interpretado por Ian McKellen no esplendoro Deuses e Monstros) em 1931, é realmente um grande filme. E não simplesmente num sentido condescendente, e teleológico, com os recursos disponíveis para o cinema de então: é de fato uma obra extremamente bem filmada, com cenas marcantes, personagens interessantes, e uma sensibilidade tocante. Obviamente, Whale tem um papel fundamental nisso, mas há de se destacar a figura de Boris Karloff, que cria a Criatura mais ambígua, adorável e repulsiva da história do cinema (capaz de fazer até mesmo Robert De Niro se envergonhar). É um trabalho de mestre, impactante, aterrorizante e principalmente emocionante (especialmente na forma como Whale filme, e Karloff interpreta, o destino final do personagem). Um filme que, quase 80 anos após sua realização, consegue a proeza de ainda despertar sentimentos de emoção, comoção e tristeza em seu espectador, merece indubitavelmente receber a alcunha de "clássico".
É verdadeiramente surpreendente essa estreia de Selton Mello na direção de longas, com Feliz Natal. Confesso que esperava um filme estilizado, mesmo pop, aproximando-se do cinema indie norte-americano contemporâneo, e, principalmente, de um filme como O Cheiro do Ralo, estrelado pelo próprio Mello (ou seja, uma mistura de humor negro e melancolia). No entanto, Feliz Natal é o oposto disso. Conta com uma narrativa absurdamente intimista, introspectiva, com pouquíssimo humor, mas com muita melancolia, e com um elenco afiado, ainda que ninguém em especial se destaque (por mais que mereçam ser valorizados os desempenhos dos veteranos Darlene Glória, uma espécia de fantasma aterrador que paira sobre a família retratada no longa, e Lúcio Mauro, deixando de lado, ainda que não totalmente, sua veia cômica, para entregar uma figura acertadamente desprezível - além, é claro, do sempre ótimo Leonardo Medeiros - ele outra vez - que não encontra nenhum problema nem em carregar o filme como protagonista, quando necessário, e muito menos em ceder espaço para outros ao seu redor brilharem). Selton utiliza-se de uma câmera invasiva, mas que parece ao mesmo tempo flutuar por entre seus personagens, para criar uma atmosfera sufocante, claustrofóbica, em uma história onde muito pouco (ou nada) "se resolve", onde os traumas dos personagens não são superados, onde relações familiares não são reatadas, onde desejos sufocados não vêm à tona. É pesado, difícil de se assistir, exaustivo, e, acima de tudo, triste. Se parece, assustadoramente, com uma coisa chamada vida real.
Rashomon é um dos filmes mais importantes da história do cinema. Assistindo-o, não fica muito difícil saber o porquê. Primeiramente, pela já óbvia importância estético-narrativa que essa, que talvez seja a obra máxima de Kurosawa, assumiu, desde seu lançamento, e consolidou com o passar do tempo. A forma encontrada pelo cineasta para narrar a mesma história sob diversos pontos de vista, se parece primária nos primeiros momentos (até porque tal recurso já se banalizou nesses mais de 50 anos que se passaram desde que Rashomon foi lançado), logo se revela um achado. Questões como a impossibilidade de se alcançar uma verdade absoluta, a relação do homem com o seu passado e a forma como este o narra perpassam a narrativa de Kurosawa, que ainda trata de costumes tradicionalistas da sociedade japonesa (e, nesse sentido, é brilhante o papel que o diretor dá à sua protagonista feminina, que acaba assumindo uma força impressionante com o desenrolar da trama, inserindo nessa uma inusitada e interessante reflexão, bastante ousada para a época, acerca do papel da mulher naquela sociedade). No entanto, Rashomon não é uma obra-prima somente por ser inovador na forma de narrar sua história. É também uma obra-prima por, principalmente, fazer dessa narrativa algo absurdamente poderoso dramaticamente, com personagens fascinantes (o destaque vai para Toshiro Mifune, impecável como o bandido Tajomaru, catalizador da trama) e com uma contundente (e, no fim das contas, otimista) reflexão acerca da condição humana. E para quem tiver a oportunidade de ler os dois contos de Ryunosuke Akutagawa nos quais Kurosawa inspirou-se para realizar Rahomon, ficará mais clara a grandeza do filme. O cineasta pega o que há de melhor neles, mas, como todo bom adaptador, vai além, desprende-se de uma certa simplicidade de Akutagawa (especialmente no conto "No Bosque", onde as versões vão simplesmente se acumulando, com uma espécie de Deus ex-machina surgindo no final para dar a versão definitiva e verdadeira) para inserir na investigação de um crime questões que nem passaram perto das intenções do escritor. Em Rashomon, esse Deus ex-machina também está presente, mas Kurosawa não vê nele nada mais do que mais uma possibilidade de se alcançar a verdade, e que acaba, no fim das contas, se revelando uma versão não tão condizente assim com o que realmente acontecera. Akira Kurosawa não se contenta em inovar o cinema a partir do artifício utilizado na literatura de Akutagawa, e também inova esse próprio artifício. Genial.
7 comentários:
Desses filmes só assisti "Caminho para Guantánamo", filme que me agradou. Também não gostei da narrativa dramatizada, pra mim é a maior falha do filme, foi uma má escolha... mas ainda assim achei um bom documentário, com um denuncismo pertinente.
Dos demais, "Feliz Natal" é um dos filmes que pretendo assistir em breve e "Frankestein", do James Whale, e "Rashomon" são duas obras que estão na minha lista de "clássicos a conferir".
Abraço!
Eu vi dois desses: "O Caminho para Gunatanamo" e "Feliz Natal", e dou as mesmas respectivas cotações que você.
O primeiro é um filme que funciona em seus momentos como "documentário", onde ele é intenso e forte. Mas quando ele vira um drama e inicia as encenações dos ocorridos, tudo soa falso.
"Feliz Natal" já é um filme muito pesado, incansável e emocionalmente desgastante. O elenco é incrível e a direção de Mello super madura.
Ciao!
Então, não sei se ficou totalmente claro, mas o que menos gostei em Caminho para Guantánamo foi justamente o lado documental. Não que a dramatização seja perfeita, mas é ao menos justificável na narrativa ... já aquelas inserções documentais me parecem totalmente desnecessárias.
cara, acho que você mostrou bem o que RASHOMON é e representa.
pra mim eh o terceiro melhor do kurosawa, atras de sete samurais e ceu e inferno.
acho que kurosawa é o meu diretor preferido, provavelmente!
Abraço.
É, eu preciso assistir mais filmes do Kurosawa. Disse que Rashomon é sua obra máxima, mas só vi três filmes dele até hoje. Tenho Kagemusha em dvd, e também tenho que assistir Os Sete Samurais.
Pois eu gosto bastante do cinema político do Winterbottom, embora nenhum esteja perto de uma obra-prima. O primeiro que eu vi foi Neste Mundo, que me impressionou bastante com aquela narrativa anti-comercial. Eu só achei bastante vazio e sem propósito o 9 Canções. Já Caminho para Guantánamo mistura documentário e ficção de forma a denunciar uma realidade gritante, mas mesmo assim pouco conhecida. Acho que é essa a função desse tipo de cinema, de revelar.
Já Feliz Natal é mesmo um peso de ver. Aquele trabalho de câmera que parece querer captar as emoções à flor da pele dos personagens é incrível, e o valor que ela dá aos olhares dos atores é de arrepiar. E me perdoe discordar, mas embora o elenco seja todo muito competente, eu destacaria a Darlene Glória numa personagem totalmente perdida e fora de si. E por mais que o filme não se pareça com o cinema indie norte-americano, é interessante saber que a grande influência do filme é o cinema de John Cassavetes, considerado o pai do cinema independente nos EUA. Inclusive, a Darlene Glória lembra em muito a musa de Cassavetes, Gena Rowlands.
E do pouco que eu vi do Kurosawa, Rashomon é o meu preferido. Acho que não existe um cineasta tão humanista quanto o Kurosawa. Ao mesmo tempo que o filme é um belo exercício de linguagem, é também uma observação excepcional da crença humana no proprio homem, com direito a lição positiva e esperançosa no final. Eu ainda escrevo alguma coisa sobre esse filme.
Dos outros comentados, tenho muita vontade de ver o Frankstein e Terra Vermelha, esse último bem mais próximo de assistir.
Rafael, também gostei bastante de Darlene Glória. E sabia dessa influência do Cassavetes no cinema do Selton, mas como ainda não tive a oportunidade de conferir nehum filme desse cineasta, preferi não citar (apesar de já ter em minhas mãos dois deles, Uma Mulher Sob Influência e Faces).
Sobre o Winterbottom, acho suas intenções louváveis, mas, ao menos nos filmes que vi, falta sensibilidade, sutileza, e sobram lugares-comuns. Ainda não vi 9 Canções, e nem A Festa Nunca Termina, que, ao que parece, trazem uma outra faceta do diretor.
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