Entre as marcas profundas que a escravidão deixou na sociedade brasileira, está a crença numa certa cordialidade das relações sociais, sobretudo no trabalho doméstico, espaço em que muitas vezes se reproduz a velha lógica da casa grande e da senzala. A figura da empregada doméstica, tão comum em nosso país, ganha, com o tempo, a confiança de seus patrões, se torna “da família”, mas sem nunca ultrapassar os limites de seu quartinho de fundos, sem nunca deixar de reconhecer o lugar imutável que ocupa nessa relação. O pacto silencioso diz que ela é inferior, é subalterna, mas sem precisar realmente proferir essas palavras.
Esse é o tema de Que
Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Val, personagem de Regina Casé, é
dessas figuras que vivem há anos na casa de seus empregadores, pelos quais
nutre respeito quase servil, ao mesmo tempo que explode em afeto pelo filho deles,
de quem sempre foi uma espécie de segunda mãe. É pelo olhar de Val que
conhecemos esse universo: o que se vê, num primeiro momento, é a rotina pesada
enfrentada pela empregada, mas à qual ela parece perfeitamente adaptada e da
qual não reclama, e um carinho muito grande no trato com o personagem de Michel
Joelsas, o jovem “patrãozinho”. Apesar da distância social, Val e Fabinho de
fato se amam e Muylaert jamais duvida disso.
Mas, enquanto os recentes e igualmente excelentes O Som ao Redor e Casa Grande também diagnosticavam essa permanência de relações, afetivas e de poder, arcaicas no Brasil contemporâneo, interessa à diretora de Que Horas Ela Volta? as mudanças que vêm
ganhando terreno no país na última década. Entra em cena Jéssica, filha de Val,
mas filha também da “Era PT”, de um momento de expansão do consumo e das
oportunidades para os mais pobres, e, consequentemente, de contestação do status quo das relações entre empregados
e patrões. Enquanto Val migrou para São Paulo, há mais de dez anos, para
trabalhar, Jéssica vai prestar vestibular na maior cidade do país, correr atrás do sonho de ser
arquiteta e ascender socialmente. Ela já não aceita o lugar que lhe foi reservado
pelos “de cima”, não adere ao pacto silencioso que lhe diz até onde pode ir.
Instalado o conflito, Muylaert claramente escolhe o lado
desse “novo Brasil”, mas sem precisar, para isso, berrar “Revolução!” e “abaixo
a burguesia!” a cada plano. Discreta e delicada, a diretora demonstra imensa
preocupação com o desenvolvimento dos personagens, conseguindo levá-los,
durante quase toda a narrativa, além dos estereótipos sociais aos quais estão
ligados. O único momento em que isso não acontece é quando Muylaert exagera na
postura de escárnio dos patrões diante da revelação dos planos de Jéssica de
cursar arquitetura na USP. Ao optar por enquadramentos fechados, muito próximos
dos rostos dos personagens, a diretora quase distorce aquelas figuras,
transformando-as, ainda que por momento brevíssimo, em monstros. Algo parecido,
aliás, acontece em Casa Grande, numa
cena em que se discute a entrada nas universidades por cotas raciais e um
rápido movimento de câmera quebra a seriedade do momento para ridicularizar o
elitismo de determinado personagem. Se nos dois casos essas escolhas estéticas
parecem pouco apropriadas diante da sobriedade adotada até ali por Muylaert e
Filipe Barbosa (diretor de Casa Grande),
é preciso dizer também que elas são detalhes irrisórios se colocadas ao lado
dos ataques histéricos que essas mesmas elites criticadas nos dois filmes vêm
proferindo contra as classes populares, sobretudo nos últimos anos, período
coincidente exatamente com essa “Era PT” (ataques que vão da proibição dos
“rolêzinhos” em shopping centers de
bairros “nobres” ao recente texto criticando os baixos preços dos ingressos de
cinema, que levariam a uma “má frequentação” desses espaços, passando, claro,
pelos frequentes comentários maldosos sobre programas
sociais como as cotas raciais e o Bolsa Família).
Politicamente lindo, sobretudo por representar
uma resposta contundente (talvez até mais que O Som ao Redor e Casa Grande)
aos que resistem à mudança, Que Horas
Ela Volta? quase me levou às lágrimas, ao final, também pelo desenvolvimento
cuidadoso do drama de seus personagens, da relação de gradual aproximação entre
mãe e filha. Muitos falam de Central do
Brasil, até pela possibilidade de indicações ao Oscar, mas em sua mistura
de luta de classes e afetos familiares, foi da obra-prima Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, que o filme de Muylaert
me fez lembrar. Está em boníssima companhia, portanto.
Anna Muylaert
2015
2015