Em Três (2016), seu filme mais recente, Johnnie To prepara cuidadosamente
um cenário (um hospital) com peças (policiais, bandidos, pacientes, médicos e
enfermeiros) que se movem rumo a uma sequência de ação anunciada e esperada: o
épico tiroteio filmado como um balé em câmera lenta, no qual To esbanja seu
gigantesco domínio de mise-en-scène.
Toda a narrativa de Três conflui para
esse momento. Trata-se, para além desse caso, de um diretor conhecido pelo
esmero com que registra os movimentos de corpos no quadro, especialmente para
construir grandes cenas de ação, e de um cinema (o policial de Hong Kong a
partir da década de 1980) que em boa medida se alicerça sobre tais cenas (como
não pensar nos tiroteios, também em câmera lenta e acompanhados pelo revoar de
pombas brancas, recorrentes nos filmes de John Woo?).
Nesse sentido, é
interessante observar como To inverte essa lógica em Amar Você (1995). A primeira meia hora é de ação quase
ininterrupta. O protagonista Lau Chun-Hoi (Ching Wan Lau), policial truculento
com o casamento em frangalhos, comanda uma operação fracassada para prender o
poderoso traficante de drogas Gwan (Tsung-Hua To), vê dois de seus parceiros
morrerem no processo, por pouco não despenca de um telhado, tem de lidar com um
pedido ilícito na delegacia em que trabalha e, em seguida, com a ameaça de
suicídio do requerente, vive um affair
na movimentada noite da cidade e, ao descobrir que a esposa (Carman Lee) está
grávida de outro homem, promove uma cena de violência no restaurante onde o
casal se conheceu. Até que cai na emboscada preparada por Gwan e é deixado à
beira da morte.
A partir desse ponto, Amar Você se torna quase um novo filme.
To passa a se dedicar a momentos do cotidiano do policial ferido, que precisa
se adaptar a uma rotina de recuperação dos movimentos (físicos) e dos momentos
(afetivos) perdidos. Lau é visto, por exemplo, descobrindo suas
recém-adquiridas limitações olfativas e gustativas, mas, principalmente, sendo
cuidado pela esposa (que estava prestes a deixá-lo) e tentando, de alguma
forma, reconstruir o casamento moribundo. Essas são cenas-chave para o
desenvolvimento do personagem, nas quais To investe considerável carga
dramática: vale tomar como exemplos a sequência relativamente longa que observa
Lau (ainda desajeitado, dando seus primeiros passos após sair do hospital)
seguindo a esposa na rua (acompanhado de uma canção romântica), descobrindo-a
num encontro com seu amante e retornando ao lar para lhe preparar um jantar,
visando a reconquistá-la; e aquela, já nos momentos finais do filme, em que ele
interage com bebês no berçário de um hospital, buscando conhecer o filho que,
apesar de não ser biologicamente seu, assumirá.
É verdade que, no
epílogo de Amar Você, To retorna ao
gênero ação, utilizando o confronto decisivo com o vilão inclusive como meio
para resolver a questão conjugal presente no centro da trama. No entanto, o
diretor parece tratar com certo desleixo esse momento, tanto na forma como ele
é inserido na história (preso, Gwan se torna um personagem esquecido durante
todo o segundo ato do filme, retornando oportunamente, quase como um Deus Ex-Machina, para esse fechamento),
quanto em sua própria concepção visual. Retomando a comparação com Três – mas também com outros filmes de
To e com exemplares contemporâneos do cinema de ação de Hong Kong –, Amar Você passa longe aqui de qualquer
esforço por construção de algum tipo de balé violento, de mise-en-scène rebuscada. O primordial, no fim das contas, são mesmo
as relações entre o protagonista e sua esposa, sobretudo a transformação dele
de homem bruto e egoísta, espécie de trem desgovernado que passa pela vida dos
que o cercam, em pai e marido dedicado.
Amar Você
Mou Mei San Taam, 1995
Johnnie To