quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Sobre cinema e religião



Uma onda religiosa aponta no horizonte do cinema contemporâneo. Obras como Além da Vida, de Clint Eastwood, A Árvore da Vida, de Terrence Malick e esse novo As Aventuras de Pi, de Ang Lee, convergem para essa ânsia de discutir as relações do homem com Deus, no caso dos dois últimos, e com a vida após a morte, no caso do primeiro. No Brasil, entretanto, a moda é o filme espírita, materialização cinematográfica dos preceitos da religião fundada por Allan Kardec no século XIX, cinema de pregação.

Depois do êxito surpresa do pequeno Bezerra de Menezes e das grandes produções Chico Xavier e Nosso Lar, o mercado do cinema espírita parece consolidado, com o lançamento de pelo menos um representante por ano. O grande problema é que esses filmes, com exceção da boa cinebiografia de Chico Xavier dirigida por Daniel Filho, estão primordialmente à serviço de uma religião institucionalizada. Importa menos contar uma boa história do que divulgar os princípios dessa religião e é claro que quem paga o preço é o bom cinema. O sujeito pode ser um cineasta de fundo de quintal, sem o menor tino para o ofício mas, se produz um filme que se enquadra num nicho de mercado forte como esse, consegue ser lançado nos cinemas, ocupando um espaço que poderia ser de alguma obra mais relevante. É o caso de E a Vida Continua... que, apesar de contar com uma ou outra cara conhecida do público de novelas - e com a inexplicável presença de Lima Duarte -, assusta pela falta de qualidade em todos os quesitos imagináveis num filme. Texto sofrível, atuações nível teatro da escola da esquina e um diretor que não sabe o que fazer com sua câmera marcam E a Vida Continua.... Mas, no fim das contas, o que importa tudo isso, se a mensagem religiosa foi disseminada, agradando ao público espírita, e algum dinheiro foi arrecadado, deixando felizes os produtores?


As Aventuras de Pi, novo trabalho de Ang Lee, é um bom contraponto a esse cinema religioso brasileiro. A busca por algo maior que explique a existência humana está presente em todo o filme, bem como um discurso de certa positivação do sentimento religioso, mas o diretor taiwanês não está à serviço de nenhum crença institucionalizada. As Aventuras de Pi fala de nossa necessidade, enquanto espécie, de encontrar sentido na vida, estruturando-a como uma narrativa (por vezes fantástica), com início, meio e fim e dotada de uma moral explicativa. Trata-se de um filme fascinando pelo poder da crença humana em algo superior e pelos mecanismos que movem essa crença, mas que jamais se submete a qualquer discurso religioso específico, tornando-se de fácil identificação até para descrentes como eu.

Diante do ecletismo sem fim da filmografia de Ang Lee, o apuro técnico e a delicadeza para contar histórias aparecem como traços comuns a todos seus trabalhos atrás das câmeras e com As Aventuras de Pi não é diferente. Movendo-se com cuidado no território pantanoso do filme de amizade entre um ser humano e um animal, Lee constrói uma narrativa mágica em seu miolo e de uma inusitada complexidade em seu epílogo. Sem dogmatismos ou discursos inflamados, o diretor apresenta a religiosidade como uma faceta incontornável e bela da humanidade, mas não como o único caminho possível para ela. E, o que é mais importante em se tratando de cinema, faz um grande filme.


E a Vida Continua... 
E a Vida Continua..., 2012
Paulo Figueiredo

As Aventuras de Pi 
The Life of Pi, 2012
Ang Lee

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Lá e de volta outra vez



Quanto valem dez anos? Uma vida de cinefilia construída - com muitas lacunas - a partir do encantamento diante de um simples filme se reencontra agora com o universo responsável por seu início, através das versões estendidas das três partes de O Senhor dos Anéis e do lançamento nos cinemas de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada.

O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, assistido no dia 1 de janeiro de 2002, redefiniu meus gostos para cinema: de espectador ocasional de blockbusters norte-americanos, passei a interessado no fazer cinematográfico, na história dessa arte e, claro, nos mais diversos tipos de filmes. E tudo por causa do maldito Peter Jackson e sua belíssima trilogia. Só consigo precisar o que tanto me encantara no trabalho de Jackson ao revê-lo mais uma vez: sua capacidade de conduzir com firmeza uma história tão longa, tão cheia de personagens e paisagens, quase um road movie mitológico; o irresistível senso de aventura que permeia a jornada de Frodo e Sam à Montanha da Perdição, sem jamais perder de vista os riscos que os personagens correm, a chance real de fracasso em sua missão (a morte de Boromir, um dos componentes da sociedade do anel, nesse primeiro filme, acentua a sensação de que nenhum daqueles sujeitos que aprendemos a amar está realmente seguro); mas, sobretudo, o cuidado no desenvolvimento dos personagens, a noção exata do equilíbrio entre a grandiosidade da trama e dos cenários e os dramas individuais de cada figura que surge na tela. Havia em A Sociedade do Anel uma estranha sensação de trabalho artesanal, mesmo com a presença massiva de efeitos especiais - sensação que, em boa medida, se estende aos dois filmes seguintes, As Duas Torres e O Retorno do Rei, ainda que diminuída pelo aumento considerável da escala de suas respectivas narrativas.

As versões estendidas acabam realçando, involuntariamente, outro mérito de Jackson: seu belo trabalho no corte de O Senhor dos Anéis, montando uma obra coesa como um todo e em cada uma de suas partes, sem sobras e sem deixar de fora algo que realmente faça falta. É claro que, para o aficcionado pelo universo de Tolkien, certas sequências são um prazer à parte: os presentes de Galadriel em A Sociedade do Anel, o flashback com Boromir e Faramir em As Duas Torres, o fim de Saruman e o confronto entre Gandalf e o Rei Bruxo de Angmar em O Retorno do Rei, por exemplo, são momentos que poderiam (e talvez até deveriam) entrar nas versões que foram para os cinemas no início da década passada. No entanto, parece inegável que, sem eles, os três filmes continuam a funcionar magnificamente, enquanto há muitas outras cenas e sequências presentes nas versões estendidas que mereceram ser deixadas de lado na sala de montagem (as tentativas de fazer graça com Gimli na passagem das Sendas dos Mortos em O Retorno do Rei, por exemplo, são de gosto um tanto duvidoso).


É curioso notar, por isso, que O Hobbit: Uma Jornada Inesperada falhe justamente em alguns dos pontos que tornaram O Senhor dos Anéis tão bom. Em primeiro lugar, há um problema que parece ter sido criado exclusivamente pela megalomania de Peter Jackson: a decisão de transformar o livro O Hobbit, de Tolkien, que não chega a ter 300 páginas, em três longos filmes. O material original traz uma história um tanto simples, com um clima bem mais leve que o de O Senhor dos Anéis, e que poderia ser contada, sem grandes problemas, num longa de três horas de duração. Mas como o Peter Jackson pós-O Retorno do Rei é um cineasta com imensa dificuldade de cortar gorduras de seus filmes (vide King Kong e Um Olhar do Paraíso) - e como os executivos da Warner, da New Line e da MGM devem estar alucinados com a possibilidade de faturar montanhas de dinheiro com uma nova trilogia passada na Terra-Média -, cá estamos diante do primeiro terço de "O Hobbit".

Outro pecado do filme está no desequilíbrio entre o tom excessivamente grandioso de sua narrativa e o pouco cuidado demonstrado com seus personagens. Jackson parece acreditar que basta trazer de volta figuras facilmente identificáveis pelo público para garantir o envolvimento emocional deste (afinal, como resistir ao Gandalf de Ian McKellen ou ao Gollum de Andy Serkis?), o que não é verdade. Como muitos já vêm apontando, os anões de O Hobbit são um problema por sua falta de personalidade própria (exceção feita ao magnético Thorin Escudo de Carvalho, interpretado por Richard Armitage), o que em nada lembra a competência com que o diretor marcou as características de cada membro da sociedade do anel em O Senhor dos Anéis. Assim, sobram no filme paisagens deslumbrantes e grandes sequências de ação, mas faltam personagens verdadeiramente memoráveis; a sensação de trabalho artesanal, tão forte na trilogia original, aparece pouco aqui.

Como fã do universo de Tolkien, e também pelo fato de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada ser, no fim das contas, um bom filme, tomo esse reencontro com Peter Jackson e a Terra-Média, pouco mais de dez anos depois de ter assistido ao primeiro O Senhor dos Anéis e de ter começado a enxergar o cinema de outra forma, como positivo. Mas não sem uma pontinha de decepção.



O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel - Versão Estendida 
The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring - Extended Version, 2001
Peter Jackson

O Senhor dos Anéis: As Duas Torres - Versão Estendida 
The Lord of the Rings: The Two Towers - Extended Version, 2002
Peter Jackson

O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei - Versão Estendida 
The Lord of the Rings: The Return of the King - Extended Version, 2003
Peter Jackson

O Hobbit: Uma Jornada Inesperada 
The Hobbit: An Unexpected Journey, 2012
Peter Jackson

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O Homem da Máfia



O retrato ultraviolento e nada glamouroso das atividades mafiosas lembra um pouco o cinema de Scorsese, particularmente Os Bons Companheiros; os personagens conversando sobre assuntos que pouco se relacionam com o tema central da narrativa apresentada remetem aos filmes de Tarantino; no entanto, O Homem da Máfia, terceiro longa-metragem do cineasta neozelandês Andrew Dominik, é cheio de estilo próprio.

Depois de realizar o belíssimo O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, o diretor optou por um trabalho de tom bastante diverso: sai a contemplação quase existencialista daquele western, entra a urgência de um thriller urbano  pautado por um pungente comentário social sobre os efeitos da atual crise econômica nos Estados Unidos. Dominik consegue equilibrar com maestria seu olhar crítico para a sociedade americana com a tarefa de contar uma boa história, com personagens minimamente interessantes. Assim, ao mesmo tempo que as figuras interpretadas por Ray Liotta, James Gandolfini, Richard Jenkins, Scoot McNairy, Ben Mendelsohn e Brad Pitt despertam os mais diversos sentimentos no espectador (como não temer o personagem de Pitt e sentir pena do de Liotta, por exemplo?), que efetivamente se interessa por seus respectivos destinos, o impacto da crítica social feita por Dominik é avassalador.

Desde sua primeira cena, O Homem da Máfia é perpassado por discursos da campanha presidencial de 2008, especialmente aqueles proferidos pelo então candidato Barack Obama, que são constrastados com a realidade dura em que se passa a história narrada. O otimismo e o senso de comunidade presentes nas palavras do futuro presidente parecem ter pouco (ou nada) a ver com o individualismo, a ganância e a miséria que marcam a existência dos personagens do filme de Dominik, algo que se explicita de maneira radical no brilhante - e apavorante - diálogo travado por Pitt e Jenkins nos momentos finais de O Homem da Máfia. Está posto então diante de Obama, sem meias palavras, o imenso desafio que seira enfrentado pelos próximos quatro (agora oito) anos. É difícil não se compadecer do sujeito. 



O Homem da Máfia 
Killing them Softly, 2012
Andrew Dominik

domingo, 18 de novembro de 2012

Argo



Ben Affleck é um cara esperto. Quando ninguém mais parecia levá-lo a sério, por ter investido numa carreira de ator recheada de papéis ruins em obras de gosto no mínimo duvidoso (ele trabalhou duas vezes com Michael Bay, por exemplo), o melhor amigo de Matt Damon resolveu se transformar em diretor de cinema, apostando em filmes pequenos, de temática urbana e pegada policial: o ótimo Medo da Verdade e o excepcional Atração Perigosa, ambos ambientados em sua Boston natal. De onde poucos esperavam surgiu um cineasta promissor, com pleno domínio de seu ofício e um inusitado talento para arrancar grandes desempenhos de seus atores.

Argo, terceiro longa-metragem do Affleck diretor, é a confirmação de seu êxito nessa nova função. Saindo pela primeira vez de sua zona de conforto geográfica, ele constrói um thriller político exemplar: carrega na atmosfera tensa que cerca a missão de seu protagonista, deixando sempre viva no espectador a noção exata do risco que aqueles personagens correm e leva muito a sério a pesquisa e a reconstituição histórica do contexto retratado, sem deixar, todavia, de introduzir passagens claramente ficcionais (ou que exageram o que realmente aconteceu) com o propósito de aumentar o nervosismo em torno do que é mostrado na tela (caso das duas sequências mais tensas de Argo, a visita ao mercado popular de Teerã e o epílogo no aeroporto). E a opção de Affleck e do roteirista Chris Terrio pela ficção quase escrachada nesses momentos (principalmente no segundo deles) passa longe de incomodar, afinal, não é também do poder da mentira em Hollywood que o filme está falando?

Apesar de não ter a força dramática visceral de Atração Perigosa (ainda seu melhor filme), até pela necessidade de apostar num alívio cômico que, apesar de funcionar por si só ("Argo fuck yourself" é provavelmente a fala mais memorável do cinema em 2012) parece um tanto deslocado do clima sério da narrativa, Argo é o terceiro grande trabalho consecutivo de Ben Affleck na direção. Poucos cineastas em início de carreira conseguiram se manter tão regulares.

Argo 
Argo, 2012


Ben Affleck

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Top 5: Os melhores filmes de vampiros


Em "homenagem" ao encerramento da Saga Crepúsculo, deixo aqui, especialmente para os fãs de Edward, Bella e companhia, essa singela lista de sugestões de filmes realmente bons protagonizados por vampiros. São todas obras relativamente recentes (a mais antiga delas está prestes a completar trinta anos) e fáceis de se encontrar.


5- Vampiros
Vampires, 1998
John Carpenter


4- Fome de Viver
The Hunger, 1983
Tony Scott


3- Entrevista com o Vampiro
Interview with the Vampire, 1994
Neil Jordan


2- Deixa Ela Entrar
Låt den rätte komma in, 2008
Tomas Alfredson


1- Drácula de Bram Stoker
Bram Stoker's Dracula, 1992
Francis Ford Coppola


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

007 - Operação Skyfall



Sempre tive os filmes de James Bond em baixa conta, como aventuras bobas e repetitivas com um protagonista que me parecia anacrônico e pretensamente charmoso. Tolice minha, sei disso, mas foi só com o início da releitura do personagem em Cassino Royale, que se estende até hoje, que comecei a realmente me importar com 007. Vivido, desde o filme de 2006, por Daniel Craig, o agente secreto britânico foi transformado numa figura brutal, letal, mas também vítima de ameaças à sua vida que soam um tanto mais críveis que aquelas enfrentadas nos tempos de Sean Connery, Roger Moore, Pierce Brosnan e outros. É verdade que há aí um bocado do fetiche do realismo que tomou conta do cinema de ação norte-americano nos últimos anos, sobretudo após o Batman de Christopher Nolan, mas é verdade também que a filiação a essa estética, junto com a presença viril, por vezes grosseira, de Craig no papel de Bond, deram uma nova e interessante cara à franquia, depois de anos de mais do mesmo.

Skyfall não foge a essa regra. Como Martin Campbell em Cassino Royale e Marc Forster em Quantum of Solace, Sam Mendes leva o mundo de James Bond muito a sério, estruturando a narrativa de seu filme sobre a relação entre o agente secreto e M (Judi Dench), sua superior, entre o velho e o novo, o arcaico e o moderno. A aposentadoria da chefe do MI6 parece estar a caminho após uma missão fracassada, que a expõe publicamente; 007, por sua vez, é questionado pelo personagem de Ralph Fiennes se não deveria deixar as missões de campo para agentes mais jovens. Completando 50 anos em 2012, a franquia James Bond poderia soar velha, mesmo repaginada. Não seria a hora de abrir espaço para novos heróis? "Juventude nem sempre significa modernidade", responde o protagonista a um jovem Q (Ben Whishaw) em determinado momento do filme. Esse é o recado de Mendes e Bond ao público de cinema do século XXI.

Skyfall está profundamente marcado por essa dialética entre novo e velho. Ao mesmo tempo que é recheado de homenagens e citações a outras obras da série, permanece na estética realista de seus dois predecessores. Ao mesmo tempo que volta ao passado de Bond e de M, aponta para um futuro promissor para a franquia, ao introduzir personagens como os de Whishaw e Fiennes. Nostálgico, classudo, mas cheio de vigor, Skyfall é como seu protagonista, adepto incorrigível do hobby de ressuscitar, vez ou outra, ainda mais forte.

E, se faltava a essa nova fase de 007 um vilão memorável, Javier Bardem deu um jeito de resolver esse problema.


007 - Operação Skyfall  
Skyfall, 2012
Sam Mendes

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Gonzaga - De Pai para Filho


Gonzaga - De Pai para Filho 
Gonzaga - De Pai para Filho, 2012
Breno Silveira


Gonzaga - De Pai para Filho é mais um exemplar desse cinema digno produzido por Breno Silveira. Assim como 2 Filhos de Francisco, Era Uma Vez... e À Beira do Caminho, o filme narra uma história popular com linguagem extremamente acessível, mas nunca se torna um trabalho televisivo, como acontece frequentemente com tantos filmes brasileiros. E novamente o diretor consegue emocionar flertando com o melodrama, mas mantendo um tom contido na dramaturgia.

A rigor, Gonzaga é um filme-irmão de 2 Filhos de Francisco. Se no longa de 2005 Silveira mostrava-se muito mais preocupado em contar a história de um pai obsessivo em sua dedicação a um sonho para seus filhos do que em fazer um filme sobre Zezé Di Camargo e Luciano, agora o diretor mantém no centro de sua narrativa a conturbada relação entre Luiz Gonzaga e seu filho famoso, Gonzaguinha (interpretado de maneira quase espírita por Julio Andrade). A ascensão do personagem-título ao posto de "rei do baião" faz parte da trama, claro, mas importa bem menos que o embate entre Gonzaga-pai e Gonzaga-filho. E se estendermos o olhar para seu outro recente trabalho, À Beira do Caminho, perceberemos que, na verdade, a temática da paternidade é uma espécie de eixo norteador da filmografia de Silveira, cineasta que, apesar de passar longe do brilhantismo, se mostra cada vez mais coerente na construção de seu cinema.