domingo, 29 de março de 2015

Jersey Boys - Em Busca da Música



Apesar de dirigido por Clint Eastwood, Jersey Boys tem cara de filme de Martin Scorsese. É verdade que a fotografia cheia de sombras de Tom Stern, tão característica do cinema de Eastwood, está presente, sobretudo na primeira parte do filme, como uma assinatura que nos lembra quem está no comando. Mas os múltiplos narradores, as constantes quebras da quarta parede, os personagens marginais envolvidos com a máfia que formam uma pequena família, regida pela lealdade forjada nas ruas... Muito parece saído do melhor Scorsese. De Os Bons Companheiros, mais especificamente. Até Joe Pesci deu um jeito de participar. Há em Jersey Boys o vigor do estilo scorseseano, que injeta uma bem-vinda juventude no olhar de Eastwood, após a direção pesada que o velho mestre imprimiu a J. Edgar (um grande filme, mas de apreciação não tão fácil).

No centro de Jersey Boys está a relação entre Frankie Valli (John Lloyd Young) e Tommy DeVito (o excelente Vincent Piazza), nascida no cotidiano dos pequenos delitos nas ruas de New Jersey e responsável pelo sucesso e declínio do grupo musical The Four Seasons, do qual Valli era a principal estrela. Mais do que acompanhar a trajetória dos músicos, interessa a Eastwood destacar a influência de suas origens nas escolhas que fizeram posteriormente – e nisso, mais uma vez, o filme remete a Scorsese, ao cuidado com que o diretor ítalo-americano costuma investigar a ética de grupo que move alguns de seus personagens (em Os Bons Companheiros, novamente, e Caminhos Perigosos, por exemplo). Nesse sentido, o mais importante em Jersey Boys é seu início. Talvez justamente por isso esse seja o momento em que a fotografia de Stern aparece de forma mais marcante. Também por isso a sequência-chave da narrativa, à qual Eastwood dedica um tempo considerável, é aquela da reunião dos personagens na casa do mafioso vivido por Christopher Walken, símbolo maior do meio de onde vêm. Ali, passado e futuro são sintetizados nas escolhas do grupo, sobretudo de Valli. Ali se concretiza a fala de um dos membros da banda, que, pouco antes, confrontando-nos através da câmera de Eastwood, nos lembrara de que, por acreditarmos que Valli abandonaria DeVito devido à irresponsabilidade deste último, certamente não somos de Jersey.

Curiosamente, nada disso diminui a leveza de Jersey Boys. Trata-se de um filme prazeroso de ser assistido, de narrativa fluida, que em nada se assemelha às aborrecidas e burocráticas cinebiografias musicais que tomaram Hollywood nos últimos anos. Personagens ricos e complexos como Ray Charles e Johnny Cash certamente mereciam ter suas vidas contadas no cinema por alguém como Clint Eastwood... Ou por Martin Scorsese, claro, já que até o humor de Jersey Boys remete aos risos (ainda que, aqui, bem menos nervosos, é verdade) que Os Bons Companheiros, Caminhos Perigosos e Cassino costumam arrancar do público.


Jersey Boys - Em Busca da Música 
Jersey Boys, 2014
Clint Eastwood

terça-feira, 17 de março de 2015

Gran Torino

  

O personagem que Clint Eastwood interpreta em Gran Torino não é muito diferente das figuras às quais o velho ator/diretor deu vida ao longo de sua carreira. Rabugento, amargurado e conservador, Walt Kowalski se parece tanto com o Frankie Dunn de Menina de Ouro quanto com o xerife Red Garnett de Um Mundo Perfeito ou com o militar Highway de O Destemido Senhor da Guerra, por exemplo. Mas é sobretudo a Harry Calahan, policial que Eastwood imortalizou numa franquia de cinco filmes (Perseguidor Implacável, Magnum 44, Sem Medo da Morte, Impacto Fulminante e Dirty Harry na Lista Negra), que o velho Kowalski parece remeter, com sua postura de valentão e um aparentemente incorrigível racismo.

E é justamente na lembrança de Dirty Harry que reside a maior força de Gran Torino. Isso porque o filme funciona basicamente como a desconstrução de uma visão de mundo cuja melhor encarnação é exatamente o personagem durão e preconceituoso que Eastwood se acostumou a interpretar. Desconstrução que começa nos primeiros contatos com a família de imigrantes do povo hmung, agora parte da vizinhança, e que se completa no maravilhoso epílogo. Se no olhar potente para os efeitos da violência sobre o homem Gran Torino não destoa do melhor cinema de Eastwood-diretor, na solução encontrada para lidar com essa violência sim: enquanto no final da obra-prima Os Imperdoáveis, por exemplo, William Munny recorria mais uma vez às armas resolver seus problemas, como uma maldição da qual não conseguia escapar, aqui Kowalski/Dirty Harry se desarma (literalmente) para derrotar seus inimigos. Gran Torino é assim um passo ainda mais além na já corajosa releitura do mito do herói americano feita em Os Imperdoáveis.  

Mas o que há de mais bonito nesse processo de desconstrução do mito é o respeito com que Eastwood e o roteirista Nick Schenk tratam seus personagens. Gran Torino é, acima de tudo, um filme sobre a descoberta da alteridade, mas que evita submeter seus complexos personagens a transformações radicais. Ao final, Walt Kowalski continua sendo um velho conservador e racista, e é justamente por reconhecer isso que ele sai de cena, como representante da Velha América que é, para abrir espaço para a Nova América, encarnada no jovem hmung Thao. Nova América na qual Kowalski aprendeu a acreditar, mas da qual sabe não fazer parte. 

Gran Torino 
Gran Torino, 2008
Clint Eastwood