segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Que Horas Ela Volta?


Entre as marcas profundas que a escravidão deixou na sociedade brasileira, está a crença numa certa cordialidade das relações sociais, sobretudo no trabalho doméstico, espaço em que muitas vezes se reproduz a velha lógica da casa grande e da senzala. A figura da empregada doméstica, tão comum em nosso país, ganha, com o tempo, a confiança de seus patrões, se torna “da família”, mas sem nunca ultrapassar os limites de seu quartinho de fundos, sem nunca deixar de reconhecer o lugar imutável que ocupa nessa relação. O pacto silencioso diz que ela é inferior, é subalterna, mas sem precisar realmente proferir essas palavras.

Esse é o tema de Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Val, personagem de Regina Casé, é dessas figuras que vivem há anos na casa de seus empregadores, pelos quais nutre respeito quase servil, ao mesmo tempo que explode em afeto pelo filho deles, de quem sempre foi uma espécie de segunda mãe. É pelo olhar de Val que conhecemos esse universo: o que se vê, num primeiro momento, é a rotina pesada enfrentada pela empregada, mas à qual ela parece perfeitamente adaptada e da qual não reclama, e um carinho muito grande no trato com o personagem de Michel Joelsas, o jovem “patrãozinho”. Apesar da distância social, Val e Fabinho de fato se amam e Muylaert jamais duvida disso.

Mas, enquanto os recentes e igualmente excelentes O Som ao Redor e Casa Grande também diagnosticavam essa permanência de relações, afetivas e de poder, arcaicas no Brasil contemporâneo, interessa à diretora de Que Horas Ela Volta? as mudanças que vêm ganhando terreno no país na última década. Entra em cena Jéssica, filha de Val, mas filha também da “Era PT”, de um momento de expansão do consumo e das oportunidades para os mais pobres, e, consequentemente, de contestação do status quo das relações entre empregados e patrões. Enquanto Val migrou para São Paulo, há mais de dez anos, para trabalhar, Jéssica vai prestar vestibular na maior cidade do país, correr atrás do sonho de ser arquiteta e ascender socialmente. Ela já não aceita o lugar que lhe foi reservado pelos “de cima”, não adere ao pacto silencioso que lhe diz até onde pode ir.

Instalado o conflito, Muylaert claramente escolhe o lado desse “novo Brasil”, mas sem precisar, para isso, berrar “Revolução!” e “abaixo a burguesia!” a cada plano. Discreta e delicada, a diretora demonstra imensa preocupação com o desenvolvimento dos personagens, conseguindo levá-los, durante quase toda a narrativa, além dos estereótipos sociais aos quais estão ligados. O único momento em que isso não acontece é quando Muylaert exagera na postura de escárnio dos patrões diante da revelação dos planos de Jéssica de cursar arquitetura na USP. Ao optar por enquadramentos fechados, muito próximos dos rostos dos personagens, a diretora quase distorce aquelas figuras, transformando-as, ainda que por momento brevíssimo, em monstros. Algo parecido, aliás, acontece em Casa Grande, numa cena em que se discute a entrada nas universidades por cotas raciais e um rápido movimento de câmera quebra a seriedade do momento para ridicularizar o elitismo de determinado personagem. Se nos dois casos essas escolhas estéticas parecem pouco apropriadas diante da sobriedade adotada até ali por Muylaert e Filipe Barbosa (diretor de Casa Grande), é preciso dizer também que elas são detalhes irrisórios se colocadas ao lado dos ataques histéricos que essas mesmas elites criticadas nos dois filmes vêm proferindo contra as classes populares, sobretudo nos últimos anos, período coincidente exatamente com essa “Era PT” (ataques que vão da proibição dos “rolêzinhos” em shopping centers de bairros “nobres” ao recente texto criticando os baixos preços dos ingressos de cinema, que levariam a uma “má frequentação” desses espaços, passando, claro, pelos frequentes comentários maldosos sobre programas sociais como as cotas raciais e o Bolsa Família). 

Politicamente lindo, sobretudo por representar uma resposta contundente (talvez até mais que O Som ao Redor e Casa Grande) aos que resistem à mudança, Que Horas Ela Volta? quase me levou às lágrimas, ao final, também pelo desenvolvimento cuidadoso do drama de seus personagens, da relação de gradual aproximação entre mãe e filha. Muitos falam de Central do Brasil, até pela possibilidade de indicações ao Oscar, mas em sua mistura de luta de classes e afetos familiares, foi da obra-prima Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, que o filme de Muylaert me fez lembrar. Está em boníssima companhia, portanto.

Que Horas Ela Volta? 
Anna Muylaert 
2015

sábado, 15 de agosto de 2015

Quarteto Fantástico




Há um grande filme escondido nesse novo Quarteto Fantástico. Na verdade, nem tão escondido assim, já que sua ótima primeira metade denuncia os acertos do diretor Josh Trank no olhar que lançou para o universo dessa família de super-heróis. Está ali uma bem-vinda seriedade, que destoa imensamente do humor tolo dos filmes de Tim Story sem perder de vista a empolgação e o frescor próprios da juventude de seus protagonistas. Está ali um certo cuidado no desenvolvimento dos personagens, que consegue extrapolar estereótipos – Victor von Doom, por exemplo, é apresentado como um jovem problemático e de temperamento difícil, mas, ainda assim, apenas um jovem, que também experimenta situações divertidas com seus colegas de pesquisa e futuros antagonistas – e construir relações verossímeis. Trank investe bastante tempo nisso, adiando ao máximo a introdução do elemento fantástico em seu filme, e o resultado é positivo: o espectador se aproxima dos personagens, compreende minimamente suas motivações, se interessa por seus destinos, ainda que nenhum dos atores esteja além do correto (o que não deixa de ser um desperdício, considerando o talento de gente como Miles Teller, Michael B. Jordan e Jamie Bell).

Daí vem a também muito boa sequência da viagem interdimensional e do acidente, seguida da descoberta, pelos personagens, dos poderes que agora possuem. Trank também faz isso bem (afinal, ele tem um filme só sobre adolescentes lidando com poderes recém-adquiridos), exprimindo com competência a dor física experimentada por Reed Richards, Johnny Storm e Ben Grimm. Mas, infelizmente, o que vem na sequência carrega Quarteto Fantástico ladeira abaixo. Se sobrou tempo de tela para a dinâmica inicial entre os personagens, faltou muito para o uso militar de Ben e Johnny e para a fuga pelo mundo de Reed – passagens com potencial para gerar conflitos interessantes, mas que no filme de Trank aparecem como clipes rápidos e desimportantes. O mesmo vale para o retorno de Doom e seu confronto com os heróis: tudo é apressado demais, as motivações do vilão não ganham o devido destaque e ele é descartado sem maior cerimônia. O diretor afirmou que houve forte interferência do estúdio e que seu filme era outro – algo não muito difícil de acreditar, considerando o histórico da Fox (Demolidor, os dois Quarteto Fantástico anteriores). Ficará restrito à imaginação um Quarteto Fantástico com duas horas e meia de duração, com Richards vivendo experiências inusitadas enquanto aprende a controlar seus poderes em diferentes partes do planeta e com Grimm e Storm vivendo os conflitos de colocar seus dons à serviço do big stick americano. Uma ficção científica séria, mas protagonizada por adolescentes, como imaginou Trank, e talvez dirigida por alguém com mais poder sobre seus filmes e igualmente identificado com o gênero... um Christopher Nolan, quem sabe... Aliás, ter Nolan à frente de um Quarteto Fantástico não é mesmo uma má ideia, por mais irrealizável que ela pareça ser.    

De qualquer forma, esse novo filme dos heróis não é tão ruim quanto se vem apregoando por aí, mesmo com todos seus problemas. É um tanto curioso, aliás, ver um bocado de fãs dos estúdios Marvel detonando o trabalho de Trank. O que o diretor fez aqui não destoa muito dos Homens de Ferro e afins que tantos idolatram hoje em dia. Neles também encontramos narrativas apressadas (Capitão América: O Primeiro Vingador, alguém?), pouco cuidado com os vilões (alguém se lembra de como Caveira Vermelha, Monge de Ferro e Whiplash foram sumariamente descartados, no primeiro Capitão América e nos dois primeiros Homem de Ferro, respectivamente?) e subaproveitamento de tramas interessantes. Ao menos o novo Quarteto Fantástico é um filme inteiro, com começo, meio e fim, e não um pedaço de um quebra-cabeças supostamente genial que nunca se completa. Mas... é melhor não discutir com marveletes, certo?  


Quarteto Fantástico 
Fantastic Four, 2015
Josh Trank