domingo, 31 de maio de 2009

[s. bernardo]

S. Bernardo
S. Bernardo, 1972
Leon Hirszman


Posso estar falando uma bobagem, mas vendo S. Bernardo, belíssima adaptação de Leon Hirszman do livro homônimo de Graciliano Ramos, não consegui deixar de pensar no recente, e fabuloso, Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson. É lógico que são filmes feitos por cineastas de formações distintas, originários de contextos bastante diferentes (Hirszman vindo do Cinema Novo, com uma bagagem de militante e intelectual comunista, e Anderson surgindo no cinema independente norte-americano da década de 1990) e separados no tempo por mais de trinta anos.
No entanto, há algo nas duas narrativas, na forma como seus diretores tratam seus protagonistas (Paulo Honório e Daniel Plainview), no uso da trilha sonora como quase um personagem à parte, que faz com que S. Bernardo e Sangue Negro possam ser vistos, mesmo que num devaneio meu, como parentes próximos. Aliás, me parece que é justamente ligando Honório a Plainview que as semelhanças se tornam mais claras. Ambos são homens ambiciosos e embrutecidos pela vida, espécie de "proto-empreendedores", que passam por cima de qualquer coisa (ou qualquer um) que os ameace, que coloque em risco seus projetos. Ambos passam, ainda, por um processo de "coisificação": tanto Honório quanto Plainview, em suas respectivas jornadas de êxito financeiro, perdem a já pequena porção de humanidade que possuíam - sem contar uma última, mas não menos importante, semelhança: o fato de os dois personagens serem vividos por intérpretes brilhantes, em momentos de absoluta inspiração (enquanto Daniel Day-Lewis constrói com sua costumeira minúcia a figura ao mesmo tempo asquerosa e fascinante de Daniel Plainview, Othon Bastos, muito mais contido, cria um Paulo Honório essencialmente brutalizado, quase uma rocha, sempre ameaçador e dotado de uma força que parece inabalável em sua incomunicabilidade com quem o cerca). É com brilhantismo que Hirszman e P. T. Anderson voltam seus olhos para um passado recente para escancarar as vísceras do capitalismo, e dos efeitos deste sobre aqueles que o abraçam de forma mais veemente.
E não é de se estranhar, portanto, que S. Bernardo possua, ainda hoje, a força absurda que possui. A sensibilidade e especialmente a imensa serenidade de Hirszman ao filmar Graciliano Ramos geram um filme seco e brutal como o Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, porém dotado de uma força poética que o longa de 1963 não possuía - que é reforçada pelo belo uso que Hirszman faz tanto dos cantos do trabalho quanto da trilha de Caetano Veloso. Um filme sóbrio, soturno e extremamente triste que, em seu silêncio quase absoluto, tem muito a dizer. Exatamente como Sangue Negro.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

[bye bye brasil]

Bye Bye Brasil
Bye Bye Brasil, 1979
Carlos Diegues


Cacá Diegues surgiu para o cinema no seio do Cinema Novo, mas que ele nunca possuiu o talento dos grandes nomes desse movimento (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos) não é muito difícil de se perceber - e seus filmes mais recentes, de qualidade um tanto duvidosa, só reforçam isso. No entanto, Diegues tem pelo menos um grande feito em sua carreira: esse Bye Bye Brasil, lançado em 1979, e que conseguiu se firmar como uma das mais marcantes obras do cinema nacional do período. Parece que o grande problema de Diegues é querer ser mais do que é; quando não toma esse tipo de postura, quando abraça um cinema mais simples, menos pretensioso e/ou rebuscado, o resultado costuma ser positivo.
Simplicidade é, aliás, a palavra perfeita para definir Bye Bye Brasil. Seu pequeno grupo de personagens, marginalizados e malandros, é a força que move sua narrativa. Estes não são exaltados, transformados em agentes de transformação social por estarem à margem do poder, e tampouco são julgados, descartados em um projeto revolucionário de sociedade por serem pessoas de caráter duvidoso, fazendo parte de uma espécie de lúmpen. Diegues simplesmente se entrega às suas personalidades ao mesmo tempo simples e complexas, a seus desejos e sonhos, tornando estes absolutamente identificáveis para quem os assiste. E como trama, propriamente dita, o filme não possui, o trio de protagonistas é fundamental para seu êxito, e, consequentemente, os atores que os interpretam também. E, nesse sentido, Bye Bye Brasil só possui acertos: Fábio Júnior, numa indefinição entre contido e inexpressivo, mas que acaba caindo como uma luva para o papel do introspectivo sanfoneiro Ciço; Betty Faria, canastrona na medida exata; e um José Wilker monstruoso em cena, construindo uma figura absolutamente fascinante, um malandro mal-caráter que carrega em si uma estranha nobreza, e que torna sua presença algo próximo de uma presença paterna para aquele grupo de "vagabundos". Lorde Cigano é, sem dúvidas, um personagem definitivo no cinema brasileiro, e sua imagem, conduzindo a Caravana Rolidei pelo "Brasil profundo", retratado de forma tão melancolicamente singela por Diegues, ao som de Chico Buarque, é o que fica, ao término de Bye Bye Brasil.

sábado, 23 de maio de 2009

[anjos & demônios]

Anjos & Demônios
Angels & Demons, 2009
Ron Howard


Me irrita bastante a forma como os livros de Dan Brown são cultuados por alguns, como se fossem o fino da literatura atual (obviamente, qualquer um que tenha um conhecimento razoável do assunto reconhece a mediocridade dos escritos de Brown). Do autor, li somente O Código Da Vinci, mas que já foi o suficiente para optar por me poupar de entrar em contato com outras de suas obras. No entanto, curiosamente, gosto bastante da versão cinematográfica de seu mais famoso livro: acho que Da Vinci funciona absurdamente melhor como filme do que como obra literária (longe de mim querer aqui considerar o cinema como uma arte menor do que a literatura, algo que, como cinéfilo apaixonado, jamais faria - simplesmente, os livros de Brown já parecem basear-se em clichês repetidos exaustivamente nos thrillers hollywoodianos, e, transpostos para filme, se tornam, com o acréscimo dos trabalhos de seus atores, diretor etc., obras inevitavelmente mais ricas, levando-se em conta a fraqueza dos materiais que as originaram). Gosto do que Ron Howard fez com o livro de Brown, com o clima escuro do filme, que às vezes se torna quase intimista (ok, talvez esteja exagerando um pouco, mas não há a grandiosidade eloquente que há no livro), e gosto especialmente do trabalho de alguns atores, especialmente Paul Bettany e Ian McKellen.
Pois bem, com Anjos & Demônios, optei por assistir ao filme sem ler o original, primeiramente, por não querer perder mais tempo com Dan Brown, e também por ver como um filme baseado em uma de suas obras funcionaria para alguém que não a leu previamente (já que no caso de Da Vinci, o efeito comparativo funcionou muito bem em favor da versão cinematográfica). E o resultado foi, novamente, muito bom. Contando com uma história mais sombria (e mesmo mais interessante) do que seu predecessor (que, na literatura é seu sucessor), Anjos & Demônios é mais um êxito de Howard ao adaptar o escritor norte-americano: é tenso na medida certa, envolvente, e, se não conta com a dupla Bettany/McKellen para abrilhantar seu elenco, ao menos possui um ótimo Ewan McGregor, que rouba a cena, simplicidade, sempre que aparece. Obviamente, problemas existem: o filme é bem mais grandioso do que O Código Da Vinci, o que não chega a ser propriamente um defeito, mas com uma história sombria como a que possui, não deixaria de ser interessante um clima mais sinistro e intimista sendo empregado na narrativa; Tom Hanks continua apático como Robert Langdon, não conseguindo, novamente, criar um protagonista empático, e que faça o espectador torcer por ele, ou ao menos se interessar por seu destino; e (o que talvez mais atrapalhe o longa) há uma necessidade irritante da trama em ser auto-explicativa a todo momento (algo que vem, claramente, de sua origem literária, onde caminhões de informações são despejados a cada capítulo sobre o leitor), com os personagens estando sempre a explícitar o que eles estão fazendo, o porquê de cada um de seus atos, o que leva a um didatismo mediocrizante.
No entanto, basta ter um mínimo contato com a literatura de Dan Brown para saber que Ron Howard e seus roteiristas estão "tirando leite de pedra", ao conseguirem entregar filmes razoavelmente bons, com alguma dramaticidade e com personagens minimamente interessantes, baseando-se nestes livros. No fim das contas, tanto O Código Da Vinci quanto Anjos & Demônios acabam funcionando como uma espécie de manual de como transformar um material ruim, medíocre, em filmes de qualidade. O que não deixa de ser um grande feito.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

[che - o argentino]

Che - O Argentino
Che - El Argentino, 2008
Steven Soderbergh


Em meio ao intenso fogo cruzado em torno da imagem de Ernesto "Che" Guevara, onde uns o defendem ferrenhamente, colocando-o como um herói, um mito, um exemplo a ser seguido, uma figura intocável, e outros (especialmente em tempos recentes, de ataque às esquerdas na América Latina) detratam sua figura, chamando-o de assassino, sanguinário, genocida, comparando-o até a Adolf Hitler (!), é muito bom assistir a essa empreitada de Steven Soderbergh.
Che é uma figura que gera emoções extremas nas pessoas, e seria muito fácil que o filme descambasse para um desses lados, ou mitificando-o, ou cuspindo em sua imagem, como fez o recente A Cidade Perdida, de Andy Garcia (um filme ruim, feito por um anti-castrista para outros anti-castristas que vivem em Miami se regozijarem). Mas Soderbergh surpreende com uma abordagem absolutamente sóbria da figura de Guevara, ainda que não deixe de, com seu filme, admirá-lo profundamente. Está lá o médico idealista, apaixonado pelos camponeses, movido por ideais de tal forma que o torna às vezes um político ruim; está lá o jovem (em 1959, Che tinha 30 anos de idade) asmático, mas corajoso; está lá o Comandante da Revolução Cubana. Soderbergh não foge de assuntos espinhosos, como a execução de desertores da guerrilha, no entanto, claramente, ele adota o ponto de vista de Guevara, justificando tais atos (o diretor parece compreender claramente que aquele era um movimento de guerrilha, onde mortes e assassinatos inevitavelmente acontecem, ao contrário de determinados grupos que buscam hoje desmoralizar Che e a Revolução Cubana). Essa opção de Soderbergh pelo ponto de vista de seu protagonista fica ainda mais clara naquelas que são as melhores cenas do filme, com o revolucionário já ministro, participando de uma conferência da ONU em Nova York. Ali se revela diante do espectador a força daquela figura e, principalmente, a força com que seus ideais o moviam. Nessas sequências, o diretor opta por uma acertada fotografia em preto e branco, granulada, que dá uma impressão de documentário da época. E que ajuda a ressaltar o mal-estar de Che naquele ambiente, seu deslocamento, mas, ainda assim, sua liderança política e capacidade de defender o que acredita, perante os inúmeros ataques de líderes de outros países e a curiosidade pitoresca da alta sociedade norte-americana (e são nestes momentos que fica mais visível a grandeza da interpretação de Benicio Del Toro, que vai além de sua semelhança física com o guerrilheiro, mergulhando no personagem e vivendo-o com intensidade, mas de forma contida, sem exagerar, o que torna seus olhares absurdamente expressivos, e ressalta sua humanidade - afastando-o, consequentemente, de uma imagem mítica de Che Guevara).
Na maior parte de Che - O Argentino, no entanto, o que se tem são imagens da guerrilha, em uma abordagem extremamente detalhada, que chega mesmo a cansar. Não há ênfase nas cenas de ação, por mais que elas existam, mas na força com que ele grupo relativamente pequeno de homens se agarraram a um ideal, e conseguiram tomar o poder em Cuba. Nesse sentido, em alguns momentos, o filme se torna contemplativo, e até um pouco arrastado (fico imaginando o que Terrence Malick, que durante muito tempo esteve cotado para comandar Che, faria com esse material). Mas, por mais que para aqueles que admiram Ernesto Guevara, seja pelo motivo que for, esse tom pouco exaltativo possa frustrar, numa análise mais calma se torna óbvio que essa abordagem sóbria, desprovida de paixões arrebatadoras, faz muito mais jus ao grande homem que foi Ernesto Guevara.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Star Trek





Recomeçar uma série que possui milhares de fãs, muitos deles obcecados (os famosos trekkers), uma dezena de filmes e mais algumas temporadas na TV não é uma empreitada para qualquer um. Transformar esse recomeço em algo novo, dono de um frescor inesperado e, além disso, em algo interessante para quem nunca se arriscou naquele universo (meu caso), é ainda mais complicado. Em Star Trek, J.J. Abrams consegue todas essas façanhas, confirmando um talento já demonstrado na série Lost e no ótimo Missão: Impossível 3. E ele ainda vai além.

Esse aqui não é simplesmente um filme de apresentação de personagens, uma prequel diretamente linkada com os outros dez longas da franquia (o que vem se tornado cada vez mais comum no cinema norte-americano, com infindáveis "inícios" e "origens" chegando todos os anos aos cinemas): é um longa disposto a reinventar a série Star Trek, a dar novos rumos a ela, utilizando-se, para isso, de um imenso respeito ao que foi feito até agora e de um roteiro absurdamente bem escrito e coerente. Sem querer entrar em detalhes da trama (até porque, a princípio, Star Trek seria simplesmente uma prequel), basta dizer que Abrams e seus roteiristas (Roberto Orci e Alex Kurtzman) encontraram uma sacada muito boa para a existência do filme como ele é e para justificar a retomada dos personagens clássicos. É esse o elemento que garante a identificação com a obra tanto dos trekkers quanto dos não-iniciados: ela funciona brilhantemente de forma isolada, como um longa auto-suficiente, mas que pode vir a ser o início de uma nova saga; e é também uma espécie de continuação da jornada de Kirk, Spock e dos outros tripulantes da Enterprise (e, volto a dizer, não apenas uma prequel).

O elenco é também um grande acerto, especialmente pela dupla de protagonistas. Chris Pine e Zachary Quinto surpreendem, captando com perfeição a dinâmica conflituosa (mas que carrega o gérmen de uma grande amizade) entre Kirk e Spock, transformando seus personagens, individualmente, em mais do que estereótipos, que protótipos de personalidades muito bem definidas (o líder emocional versus o líder racional); essas características estão lá, muito claras, mas a interpretação da dupla, carregada de nuances, faz com que elas soem críveis. Há ainda um excepcional elenco secundário, do qual especialmente Zoe Saldana, Karl Urban e Simon Pegg se destacam, e um vilão no mínimo interessante, interpretado pelo sempre ótimo Eric Bana. Nero é, sem dúvidas, um ser cruel, uma figura destrutiva, mas Bana (e a dupla Orci e Kurtzman) faz dele alguém dotado de motivações até mesmo compreensíveis, alguém maltratado por seu destino que acaba se transformando num poço de ódio e amargura.

Star Trek é um filme de escala grandiosa, um espetáculo de efeitos visuais, com cenas de ação nem um pouco modestas. No entanto, antes de qualquer coisa, está a preocupação em realizar-se aqui um bom filme. Só por conseguir fazer com que pessoas como eu, que nunca se imaginaram entrando em um cinema para assistir a um filme da série, se interessem por esse universo, o trabalho de Abrams, Orci e Kurtzman já deveria ser louvado. Mas, independente do público que o filme atinja, seja ele feito para trekkers ou para quem só deseja assistir a um entretenimento dotado de um mínimo de inteligência, basta colocar os olhos nele para reconhecer, imediatamente, sua qualidade.

Star Trek 
Star Trek, 2009
J.J. Abrams

segunda-feira, 11 de maio de 2009

[alguns filmes - abril]

O Homem do Pau Brasil
O Homem do Pau Brasil, 1981
Joaquim Pedro de Andrade


Caminho para Guantánamo
The Road to Guantánamo, 2006
Michael Winterbottom & Mat Whitecross

Terra Vermelha
Birdwatchers / La Terra degli Uomini Rossi, 2008
Marco Bechis

Frankenstein
Frankenstein, 1931
James Whale

Feliz Natal
Feliz Natal, 2008
Selton Mello

Rashomon
Rashômon, 1950
Akira Kurosawa


Mais de 20 anos antes de Todd Haynes colocar Cate Blanchett para interpretar uma das facetas de Bob Dylan em Não Estou Lá, Joaquim Pedro de Andrade já ousava ao biografar Oswald de Andrade em O Homem do Pau Brasil, tendo uma atriz (Ítala Nandi) interpretando um dos componentes da personalidade do escritor/poeta/dramaturgo/filósofo (o "lado masculino" de Oswald é vivido por Flávio Galvão). De uma certa forma, o diretor retoma aqui o cinema antropofágico de seu maior clássico, Macunaíma, para apresentar, de uma forma nada didática e absolutamente criativa, a vida de Oswald: assim como na adaptação da rapsódia de Mário de Andrade, a prática antropofágica perpassa a narrativa, e exerce um papel fundamental em seu epílogo. Mais do que uma biografia, O Homem do Pau Brasil é uma leitura da trajetória do modernista através de sua própria obra, tendo como óbvio motor, a antropofagia. Não é um filme perfeito como Macunaíma, nem impactante como Os Inconfidentes, mas é de uma ousadia admirável, um tipo de experimentalismo totalmente coerente tanto com a figura (ou figuras) de Oswald de Andrade, quanto com o próprio cinema de Joaquim Pedro, nunca acomodado, sempre disposto a ser ácido e crítico utilizando-se de novos referenciais estéticos. É o filme- testemunho do cineasta, já que este morreria 7 anos depois, sem conseguir concluir novos projetos, e ao mesmo tempo é dedicado a Glauber Rocha (falecido no mesmo ano de 1981 em que O Homem do Pau Brasil fora lançado), uma espécie de Oswald de Andrade do Cinema Novo brasileiro. Funciona perfeitamente em ambos os casos.
Ainda estou para ser convencido acerca da qualidade do cinema de Michael Winterbottom. Um dos mais badalados cineastas do cinema contemporâneo, o inglês simplesmente não conseguiu me conquistar em nenhum dos quatro filmes seus que assisti: Neste Mundo, Código 46, O Preço da Coragem (talvez o melhor deles) e esse Caminho para Guantánamo. Essa aqui é, aliás, uma de suas mais elogiadas e premiadas obras, o que me parece um mero reflexo do momento político em que foi feita. Não que Caminho para Guantánamo seja um filme ruim, pelo contrário, é razoavelmente envolvente, e conta com algumas cenas bastante marcantes. No entanto, Winterbottom parece disposto a se boicotar a todo momento, exagerado na estética seca e realista, já tão batida para os filmes ocidentais que abordam o Oriente Médio, e ainda escorrega feio ao misturar sua narrativa dramatizada, já excessivamente "realista", com um tom documental, ao colocar os sujeitos reais que inspiraram o filme dando depoimentos a todo momento, depoimentos esses que só servem para reiterar o que as imagens da câmera de Winterbottom haviam acabado de mostrar. Falta sensibilidade e, principalmente, sutileza para o inglês alcançar verdadeiramente o posto de um dos cineastas mais relevantes da atualidade. Como está agora, é muito mais produto de um hype excessivo do que de talento verdadeiro (digo isso, obviamente, baseando-me nos filmes de Winterbottom que assisti até o momento).
Realizar um filme sobre as disputas de terra entre tribos indígenas e latifundiários no Brasil sem descambar para discursos inflamados e posturas panfletárias não é uma tarefa fácil. Só por conseguir isso, sem, no entanto, ficar necessariamente "em cima do muro", Terra Vermelha já é um trabalho admirável do diretor italiano Marco Bechis. No filme, os índios da tribo Guarani-Kaiowá não são meras vítimas nas mãos de gananciosos proprietários de terra, mas também não são selvagens bárbaros atrasados, como alguns setores de nossa sociedade buscam pintá-los. São seres humanos de carne-e-osso, membros de uma comunidade que vivem no limiar entre a aculturação e a sobrevivência de seus costumes, tendo de sobreviver sob os limites impostos pela "civilização". Enquanto isso, o "outro lado", encarnado na figura sempre talentosa de Leonardo Medeiros, também não se resume a fazendeiros sem coração, que desprezam a cultura indígena e armam tramas maquiavélicas para destruí-la: o personagem de Medeiros talvez seja a síntese perfeita de uma grande parte de nossa sociedade, que vê nos índios figuras arcaicas, com as quais até se pode coexistir, desde que esses mantenham distância, permaneçam nas reservas a eles determinadas, não "arranjem confusão" com os brancos. A dificuldade desses setores em entender a alteridade das culturas indígenas, e as dificuldades destas de inserirem-se na "sociedade civilizada", é exacerbada em uma belíssima cena, em que Medeiros discute com o líder dos Guarani-Kaiowá acerca de seu direito à posse daquela terra, na qual várias gerações de sua família trabalhou para garanti-lo. É uma cena reveladora, poderosa, e que impregna o espectador do impasse de tal situação. Impasse que, mesmo existindo, não impede que Bechis tome o lado, por mais dúbia e moderada que essa tomada de posição possa ser, dos indígenas. E aumenta aqui, a necessidade de admirar Terra Vermelha: se já fora sensato o bastante para evitar maniqueísmos e lugares-comuns, é também suficientemente corajoso para escolher um lado, e para firmar um posicionamento (e o belíssimo final só serve para coroar essa escolha).
Um dos maiores clássicos do cinema de horror, Frankenstein, dirigido por James Whale (aquele cineasta interpretado por Ian McKellen no esplendoro Deuses e Monstros) em 1931, é realmente um grande filme. E não simplesmente num sentido condescendente, e teleológico, com os recursos disponíveis para o cinema de então: é de fato uma obra extremamente bem filmada, com cenas marcantes, personagens interessantes, e uma sensibilidade tocante. Obviamente, Whale tem um papel fundamental nisso, mas há de se destacar a figura de Boris Karloff, que cria a Criatura mais ambígua, adorável e repulsiva da história do cinema (capaz de fazer até mesmo Robert De Niro se envergonhar). É um trabalho de mestre, impactante, aterrorizante e principalmente emocionante (especialmente na forma como Whale filme, e Karloff interpreta, o destino final do personagem). Um filme que, quase 80 anos após sua realização, consegue a proeza de ainda despertar sentimentos de emoção, comoção e tristeza em seu espectador, merece indubitavelmente receber a alcunha de "clássico".
É verdadeiramente surpreendente essa estreia de Selton Mello na direção de longas, com Feliz Natal. Confesso que esperava um filme estilizado, mesmo pop, aproximando-se do cinema indie norte-americano contemporâneo, e, principalmente, de um filme como O Cheiro do Ralo, estrelado pelo próprio Mello (ou seja, uma mistura de humor negro e melancolia). No entanto, Feliz Natal é o oposto disso. Conta com uma narrativa absurdamente intimista, introspectiva, com pouquíssimo humor, mas com muita melancolia, e com um elenco afiado, ainda que ninguém em especial se destaque (por mais que mereçam ser valorizados os desempenhos dos veteranos Darlene Glória, uma espécia de fantasma aterrador que paira sobre a família retratada no longa, e Lúcio Mauro, deixando de lado, ainda que não totalmente, sua veia cômica, para entregar uma figura acertadamente desprezível - além, é claro, do sempre ótimo Leonardo Medeiros - ele outra vez - que não encontra nenhum problema nem em carregar o filme como protagonista, quando necessário, e muito menos em ceder espaço para outros ao seu redor brilharem). Selton utiliza-se de uma câmera invasiva, mas que parece ao mesmo tempo flutuar por entre seus personagens, para criar uma atmosfera sufocante, claustrofóbica, em uma história onde muito pouco (ou nada) "se resolve", onde os traumas dos personagens não são superados, onde relações familiares não são reatadas, onde desejos sufocados não vêm à tona. É pesado, difícil de se assistir, exaustivo, e, acima de tudo, triste. Se parece, assustadoramente, com uma coisa chamada vida real.
Rashomon é um dos filmes mais importantes da história do cinema. Assistindo-o, não fica muito difícil saber o porquê. Primeiramente, pela já óbvia importância estético-narrativa que essa, que talvez seja a obra máxima de Kurosawa, assumiu, desde seu lançamento, e consolidou com o passar do tempo. A forma encontrada pelo cineasta para narrar a mesma história sob diversos pontos de vista, se parece primária nos primeiros momentos (até porque tal recurso já se banalizou nesses mais de 50 anos que se passaram desde que Rashomon foi lançado), logo se revela um achado. Questões como a impossibilidade de se alcançar uma verdade absoluta, a relação do homem com o seu passado e a forma como este o narra perpassam a narrativa de Kurosawa, que ainda trata de costumes tradicionalistas da sociedade japonesa (e, nesse sentido, é brilhante o papel que o diretor dá à sua protagonista feminina, que acaba assumindo uma força impressionante com o desenrolar da trama, inserindo nessa uma inusitada e interessante reflexão, bastante ousada para a época, acerca do papel da mulher naquela sociedade). No entanto, Rashomon não é uma obra-prima somente por ser inovador na forma de narrar sua história. É também uma obra-prima por, principalmente, fazer dessa narrativa algo absurdamente poderoso dramaticamente, com personagens fascinantes (o destaque vai para Toshiro Mifune, impecável como o bandido Tajomaru, catalizador da trama) e com uma contundente (e, no fim das contas, otimista) reflexão acerca da condição humana. E para quem tiver a oportunidade de ler os dois contos de Ryunosuke Akutagawa nos quais Kurosawa inspirou-se para realizar Rahomon, ficará mais clara a grandeza do filme. O cineasta pega o que há de melhor neles, mas, como todo bom adaptador, vai além, desprende-se de uma certa simplicidade de Akutagawa (especialmente no conto "No Bosque", onde as versões vão simplesmente se acumulando, com uma espécie de Deus ex-machina surgindo no final para dar a versão definitiva e verdadeira) para inserir na investigação de um crime questões que nem passaram perto das intenções do escritor. Em Rashomon, esse Deus ex-machina também está presente, mas Kurosawa não vê nele nada mais do que mais uma possibilidade de se alcançar a verdade, e que acaba, no fim das contas, se revelando uma versão não tão condizente assim com o que realmente acontecera. Akira Kurosawa não se contenta em inovar o cinema a partir do artifício utilizado na literatura de Akutagawa, e também inova esse próprio artifício. Genial.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Guerra ao Terror



Desde o início da chamada "guerra contra o terror", o cinema, especialmente o norte-americano, apropriou-se desse polêmico conflito como temática. E, em praticamente 100% dos casos, adota-se em tais filmes uma estética realista, uma violência crua e uma linguagem próxima à linguagem documental (e os exemplos nesse sentido são abundantes, desde os recentes O Reino, de Peter Berg, e Rede de Mentiras, de Ridley Scott, até os filmes de Michael Winterbottom, que chegam a quase se assumir enquanto documentários - caso de O Preço da Coragem e Caminho para Guantánamo). Curiosamente, no entanto, essa linguagem, que parece claramente a mais apropriada para tratar de um tema como esse, não conseguiu até agora gerar uma grande obra cinematográfica sequer.

Nesse sentido, esse The Hurt Locker (que recebe no Brasil o preguiçoso título de Guerra ao Terror) é um marco. Não que a estética suja-realista-documental seja abandonada; pelo contrário, ela é até radicalizada na narrativa do longa de Kathryn Bigelow: a diretora acompanha a rotina de uma equipe anti-bombas do exército norte-americano no Iraque, deixando de lado qualquer pretensão de possuir uma trama linearmente construída, focando-se exclusivamente na dinâmica entre o trio de protagonistas (vividos por Anthony Mackie, Brian Geraghty e pelo estupendo Jeremy Renner), permitindo que seus dramas, personalidades contrastantes e, principalmente, a insuportável tensão que permeia seu trabalho, sejam a força motriz do filme. Não há uma história propriamente dita em The Hurt Locker, apenas aqueles três sujeitos sobrevivendo dia após dia (e Bigelow filma cada uma das missões do trio com um talento surpreendente e impressionante, fazendo com que cada sequência dessas supere a anterior em tensão).

O que torna o filme inovador, e, consequentemente, absurdamente poderoso, é a forma como a diretora utiliza-se dessa linguagem já batida (e também de sua experiência em filmes de ação) para fazer poesia. É isso mesmo. Bigelow parte de imagens extremamente brutais, construídas a partir de uma estética também brutal, dura, seca, para criar momentos de profunda beleza e melancolia, que sintetizam, como nenhum filme havia conseguido até agora, o turbilhão de emoções, dramas e pavores pelo qual passam os soldados que lutam na tal "guerra contra o terror", em ambientes onde qualquer um pode ser um inimigo em potencial. Os exemplos são muitos, como a impressionante sequência no deserto, na qual Ralph Fiennes faz sua breve aparição (aliás, não deixa de ser interessante como Bigelow não tem o menor pudor de livrar-se rapidamente dos nomes mais famosos de seu elenco, deixando que as verdadeiras estrelas deste brilhem) mas talvez a cena mais admirável e impactante de The Hurt Locker seja um pequeno momento envolvendo o personagem de Renner, um uniforme militar e um chuveiro. Só assistindo para compreender a força dessa e das inúmeras outras imagens criadas por Bigelow para essa inesperada obra-prima, que se coloca para a Guerra do Iraque, talvez num exagero empolgado meu, como Apocalypse Now se colocara para a Guerra do Vietnã.

Guerra ao Terror 
The Hurt Locker, 2008
Kathryn Bigelow


P.S.: surpreendentemente, The Hurt Locker saiu há poucos dias em DVD no Brasil, com o já citado título de Guerra ao Terror. Digo surpreendentemente porque o filme sequer foi lançado nos cinemas norte-americanos, e vem sendo cotado seriamente, ao menos por enquanto, para o próximo Oscar. Caso a Academia faça justiça e esse filme receba um punhado de indicações, a distribuidora brasileira responsável por ele perceberá a falha que cometeu.

sábado, 2 de maio de 2009

[x-men origens: wolverine]

X-Men Origens: Wolverine
X-Men Origins: Wolverine, 2009
Gavin Hood


Provavelmente, o desenho clássico dos X-Men foi a animação que mais marcou minha infância. Wolverine nunca foi meu personagem favorito, mas creio ser inegável sua força e riqueza, que o transformaram no mais querido dos X-Men. Sou encantando com os filmes de Bryan Singer sobre os mutantes, especialmente X-Men 2, um dos melhores filmes de super-heróis já produzidos. O cuidado do trabalho de Singer, mais preocupado em contar grandes histórias, com bem vindos toques de complexidade, foi meio que atropelado por Brett Ratner no terceiro filme, que conta com uma premissa poderosa dramaticamente (e dono de alguns momentos indiscutivelmente muito bons), mas mal-cuidada, com o diretor buscando uma espécie de recorde de mutantes mostrados por minuto de filme. A partir de O Confronto Final, fiquei com um pé atrás com qualquer coisa que se relacione aos X-Men no cinema sem ter o nome de Bryan Singer à frente.
Pois bem, iniciei meu texto dizendo isso porque fui assistir a X-Men Origens: Wolverine com esse meu preconceito em mente. No entanto, gostaria de poder justificar minha repulsa a esse filme somente por essa minha resitência. Infelizmente, isso não é possível. Pois mesmo que não tivesse nenhuma ligação afetiva com os mutantes, mesmo que detestasse os outros filmes da série, e, mais importante, mesmo que fosse apenas um fã de longas de ação ávido por adrenalina ao entrar numa sala de cinema, Wolverine não deixaria de ser um filme muito ruim. Talvez a única coisa que se salve na obra, e que a impeça de receber uma cotação mais baixa, seja a construção da figura de Victor Creed/Dentes-de-Sabre, vivido com afinco pelo reconhecidamente ótimo Liev Schreiber, e que finalmente é retratado como alguém complexo, o nêmesis de Wolverine, muito mais do que somente um capanga rosnador. De resto, tudo, absolutamente tudo, está fora do lugar em Wolverine. Os efeitos são excessivamente fake, beirando o tosco em muitos momentos. Os personagens são simplesmente arquétipos muito mal desenvolvidos, figuras prontas a aparecer em cena e sumir sem o menor motivo (tem até Will.i.am, do Black Eyed Peas). Não resta nenhum vestígio da complexidade imposta por Singer. E a história, bem, é um fiapo. A narrativa é o mais clichê e previsível possível, com flashbacks explicativos entrando quando necessário para alguma reviravolta e com os personagens soltando frases de efeito a todo momento, e com um amontoado de cenas constrangedoras (sendo a luta entre o protagonista e o mutante Blob, em um ringue de boxe, o ápice do embaraço). A direção de Gavin Hood é não menos que medíocre, com direito a uma cena de um personagem gritando sobre o corpo de outro enquanto a câmera se afasta ...
E, por fim, a origem de Wolverine, talvez um dos elementos mais intrigantes e fascinantes dos filmes de Singer, é revelada de uma forma absolutamente frustrante. Até começa bem, com as cenas envolvendo Logan e Creed jovens e posteriomente participando de grandes guerras, mas depois degringola em um sem número de lugares-comuns totalmente irritantes. Diante disso, acaba sendo inevitável pensar que talvez fosse melhor que a tal origem do mais adorado dos X-Men continuasse nas sombras. Sem dúvidas, assim Wolverine continuaria a ser um personagem tão fascinante como era nos três outros filmes da série, e não um mero herói de longas de ação. Em tempos de Batman - O Cavaleiro das Trevas e Watchmen, X-Men Origens: Wolverine se firma como um claro retrocesso para os filmes baseados em HQ's. Ao menos, Gavin Hood conseguiu uma proeza: fez O Confronto Final, até então o mais fraco da série, parecer algo muito próximo de uma obra-prima. "Parabéns"!