Uma onda religiosa aponta no horizonte do cinema contemporâneo. Obras como Além da Vida, de Clint Eastwood, A Árvore da Vida, de Terrence Malick e esse novo As Aventuras de Pi, de Ang Lee, convergem para essa ânsia de discutir as relações do homem com Deus, no caso dos dois últimos, e com a vida após a morte, no caso do primeiro. No Brasil, entretanto, a moda é o filme espírita, materialização cinematográfica dos preceitos da religião fundada por Allan Kardec no século XIX, cinema de pregação.
Depois do êxito surpresa do pequeno Bezerra de Menezes e das grandes produções Chico Xavier e Nosso Lar, o mercado do cinema espírita parece consolidado, com o lançamento de pelo menos um representante por ano. O grande problema é que esses filmes, com exceção da boa cinebiografia de Chico Xavier dirigida por Daniel Filho, estão primordialmente à serviço de uma religião institucionalizada. Importa menos contar uma boa história do que divulgar os princípios dessa religião e é claro que quem paga o preço é o bom cinema. O sujeito pode ser um cineasta de fundo de quintal, sem o menor tino para o ofício mas, se produz um filme que se enquadra num nicho de mercado forte como esse, consegue ser lançado nos cinemas, ocupando um espaço que poderia ser de alguma obra mais relevante. É o caso de E a Vida Continua... que, apesar de contar com uma ou outra cara conhecida do público de novelas - e com a inexplicável presença de Lima Duarte -, assusta pela falta de qualidade em todos os quesitos imagináveis num filme. Texto sofrível, atuações nível teatro da escola da esquina e um diretor que não sabe o que fazer com sua câmera marcam E a Vida Continua.... Mas, no fim das contas, o que importa tudo isso, se a mensagem religiosa foi disseminada, agradando ao público espírita, e algum dinheiro foi arrecadado, deixando felizes os produtores?
As Aventuras de Pi, novo trabalho de Ang Lee, é um bom contraponto a esse cinema religioso brasileiro. A busca por algo maior que explique a existência humana está presente em todo o filme, bem como um discurso de certa positivação do sentimento religioso, mas o diretor taiwanês não está à serviço de nenhum crença institucionalizada. As Aventuras de Pi fala de nossa necessidade, enquanto espécie, de encontrar sentido na vida, estruturando-a como uma narrativa (por vezes fantástica), com início, meio e fim e dotada de uma moral explicativa. Trata-se de um filme fascinando pelo poder da crença humana em algo superior e pelos mecanismos que movem essa crença, mas que jamais se submete a qualquer discurso religioso específico, tornando-se de fácil identificação até para descrentes como eu.
Diante do ecletismo sem fim da filmografia de Ang Lee, o apuro técnico e a delicadeza para contar histórias aparecem como traços comuns a todos seus trabalhos atrás das câmeras e com As Aventuras de Pi não é diferente. Movendo-se com cuidado no território pantanoso do filme de amizade entre um ser humano e um animal, Lee constrói uma narrativa mágica em seu miolo e de uma inusitada complexidade em seu epílogo. Sem dogmatismos ou discursos inflamados, o diretor apresenta a religiosidade como uma faceta incontornável e bela da humanidade, mas não como o único caminho possível para ela. E, o que é mais importante em se tratando de cinema, faz um grande filme.
E a Vida Continua..., 2012
Paulo Figueiredo
The Life of Pi, 2012
Ang Lee
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