segunda-feira, 14 de abril de 2014

Cortinas Fechadas



O título Cortinas Fechadas faz referência ao ponto de partida desse novo filme de Jafar Panahi (co-dirigido por Kambozia Partovi): um homem se esconde com seu cachorro numa casa de praia, vedando todas as entradas de luz para não ser descoberto. Mas remete também à situação atual de Panahi, proibido de filmar pelo governo iraniano desde sua prisão, em 2010. Espetáculo interrompido.

Cortinas Fechadas é sobre essa interdição a um artista. Em seu trabalho anterior, o doloroso Isto Não É Um filme, Panahi narrava para a câmera a história de um roteiro que escrevera e chegava à conclusão de que a um filme não basta ser contado – ele tem de ser filmado. Daí a dor experimentada por esse homem, impedido de exercer seu ofício. Aqui, ele tenta, mesmo diante das limitações impostas, filmar uma história (claustrofóbica, condizente com a realidade que vive fora das telas). Mas desiste no meio. A criatividade persiste, os personagens ganham vida e lutam pela atenção do seu criador, mas ele está enfraquecido pelo poder maior que o oprime. Panahi entra em cena e passa a registrar seu próprio cotidiano, feito de coisas pequenas demais diante de sua necessidade maior de produzir arte. Vale interromper também o espetáculo de uma vida já sem sentido? O suicídio chega a ser encenado, mas a imagem, rebobinada, evidencia a disposição do diretor a resistir.

Nesse embate entre banalidade cotidiana e pulsão pela arte, o primeiro polo parece vitorioso até certo ponto do plano que encerra Cortinas Fechadas: Panahi fecha as grades da casa de praia, trancafiando lá dentro sua criatividade, e vai embora. Vida que segue. No último instante, entretanto, já distante da câmera que permanece estática no interior da casa, vemos o homem com seu cachorro, personagens que abrem o filme e ocupam seu centro por um bom tempo, entrando no carro do diretor e partindo com ele para um destino desconhecido. Panahi não se entrega.

Cortinas Fechadas pode soar repetitivo para quem já assistiu a Isto Não É Um Filme. Mas não há como criticar o diretor por falar do único tema que lhe é pertinente no momento. Repetir, ininterruptamente e por meios clandestinos, a denúncia do arbítrio, é o que Jafar Panahi pode fazer agora. E, claro, alimentar a esperança de que tal denúncia produza algum efeito positivo sobre sua terrível situação.


Cortinas Fechadas 
Pardé / Closed Curtain, 2013
Jafar Panahi & Kambozia Partovi

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Isto é Cinema: Cão Branco, de Samuel Fuller



Cão Branco é um filme fortíssimo sobre racismo. Mas é também uma defesa apaixonada do cinema narrativo clássico, feita pelo grande Samuel Fuller. Enquanto critica o espetáculo vazio de Star Wars e o fetiche pelo documentário como porta voz da verdade do mundo, Fuller esbanja talento e domínio da linguagem cinematográfica. A sequência que mais chama atenção nesse sentido é aquela em que o cão assassino do título vaga pelas ruas de Los Angeles até encontrar uma nova vítima. Aqui, o diretor aposta todas suas fichas na capacidade do cinema de comunicar pela imagem – e o resultado é impressionante.

Primeiro vem o quase encontro entre o cão assassino e a criança negra. Fuller constrói a tensão exclusivamente pela movimentação dos atores em cena, tornando o tempo elemento fundamental: ele parece se expandir enquanto o menino se coloca num ponto que, dentro de alguns segundos, estará no campo de visão do animal. Mas o diretor quebra a expectativa do crime ao introduzir o elemento externo da mãe que, sem saber do risco iminente, retira o filho de cena, aliviando/frustrando o espectador, angustiado/ansioso diante da fatalidade aparentemente inevitável. Não há música e os sons diegéticos são muito discretos. Pura mise-en-scène.

Os sons diegéticos surgem com força logo em seguida, na construção do encontro entre o cão e sua próxima vítima: os passos elegantes de um homem negro opõem-se à respiração ofegante do animal. O duelo, anunciado pelos enquadramentos e montagem tirados do western, se transforma num massacre, com o sujeito sendo destroçado após buscar refúgio numa igreja. A música de Ennio Morricone também entra em cena, como um lamento, que se estende para a terceira parte da sequência. Nela, Fuller dá outra lição de direção ao extrair força dramática do que está fora do quadro. A câmera permanece no rosto do treinador de animais responsável por reeducar o cão assassino, que acaba de encontrar o cadáver na igreja. O impacto provocado pelo que só o personagem vê se estende a nós justamente por sermos privados do olhar. Coisa de quem sabe o que faz.

Qual melhor maneira de defender o cinema narrativo clássico senão realizando uma obra-prima como Cão Branco?




terça-feira, 8 de abril de 2014

Noé



O maior mérito de Noé é abraçar a natureza fantasiosa de sua história. Darren Aronofsky filma a Bíblia sem medo de parecer O Senhor dos Anéis e o resultado é, na maior parte da narrativa, consideravelmente bom. Até a chegada do dilúvio, Noé empolga como aventura cheia de mitos, magias, criaturas fantásticas e uma grande sequência de batalha. O filme naufraga (não resisti!) quando resolve se levar muito a sério. Quando o fanatismo do protagonista insere na trama um conflito injustificável – afinal, aquela família deixou milhões morrerem guiada justamente pelas crenças de Noé, mas resolve simplesmente descartá-las quando exigem que se corte na própria carne? Quanto egoísmo! E o peso do genocídio divino sobre a consciência do personagem de Russell Crowe (bem em cena, por sinal, ao contrário do restante de sua família) se resolve com uma rápida passagem dele pelo alcoolismo... Enfim, nessa sua segunda parte, Noé se torna um filme aborrecido, previsível e sisudo demais, exatamente o contrário do que era até ali (não à toa, a melhor coisa do longa são os gigantescos Guardiões). Um filme que se quer verossímil dentro da inverossimilhança.

O que me faz pensar em até que ponto o mundo não seria melhor se encarássemos nossos mitos fundadores simplesmente como o que são, mitos, e não como verdades absolutas e grandiosas que devem ser impostas aos que não acreditam nelas. Noé, com uma narrativa que passa da absoluta fantasia para a pretensão de seriedade, é uma pequena mostra de como essas histórias, que começamos a ouvir ainda na infância, podem ser fascinantes, tensas, envolventes e empolgantes (e também violentas e complexas)... Quando encaradas como histórias (ou “estórias”). Mas é também uma mostra de como são tolos os que veem nelas História.


Noé 
Noah, 2014
Darren Aronofsky

sábado, 5 de abril de 2014

José Wilker, 1946-2014


 

Dia desses, paguei uma velha dívida com o cinema brasileiro ao finalmente assistir Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), clássico de Bruno Barreto. Apesar de o protagonismo na trama caber à Sônia Braga, é José Wilker quem rouba a cena com seu Vadinho, personagem malandro, viciado em jogos de azar, amante voraz e marido mau caráter que volta dos mortos para saciar a saudade de sua viúva.

A imensa tristeza pela partida inesperada de Wilker me faz pensar em como muitos conhecem tão pouco o trabalho desse grande ator, que parece mais lembrado por ser o comentador oficial da versão mutilada do Oscar exibida pela Globo todos os anos – ou, no máximo, pelo  Giovanni Improtta da novela Senhora do Destino. Quem assiste, hoje, a pérolas como Dona Flor e Seus Dois Maridos (que até 2010 ocupava o posto de maior sucesso financeiro da história do nosso cinema), Os Inconfidentes e Bye Bye Brasil, todas marcadas por grandes desempenhos de Wilker? E vale perguntar também: quem exibe esses filmes? Não a Globo, infelizmente (que, na próxima segunda-feira, exibirá como homenagem a Wilker justamente o spin-off cinematográfico de seu personagem no folhetim citado acima). 

E assim os grandes do cinema brasileiro vão morrendo e sendo lembrados simplesmente como atores de TV – nas homenagens post mortem, os filmes que fizeram aparecem como apêndices em suas carreiras. Sobram as memórias marginais dos cinéfilos inveterados (como Wilker, aliás), que jamais vão se esquecer de Tiradentes, Vadinho e Lorde Cigano.

terça-feira, 1 de abril de 2014

A ditadura no cinema brasileiro - Parte II


Abaixo, minha contribuição para a edição de ontem (31/03) do programa Agenda, da Rede Minas, com algumas palavras sobre as representações cinematográficas da ditadura que governou o Brasil por 21 anos.