segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

No cinema: Crepúsculo

[crepúsculo]

Crepúsculo
Twilight, 2008
Catherine Hardwicke

Pode parecer mera implicância, por se tratar de um fenômeno (tanto literário quanto cinematográfico) entre o público jovem, mas a verdade é que Crepúsculo é um filme, no máximo, razoável (não posso falar do livro, do qual preferi passar longe, mas, ao se observar a história que o longa conta, é pouco provável que a versão literária seja muito melhor). Dirigido pela cada vez pior Catherine Hardwicke (que estourou com Aos Treze, e acabou se entregando a um cinema mais convencional, como a bomba Jesus - A História do Nascimento), o filme é de covardia e simplismo impressionantes.
No fundo, Crepúsculo é um tradicional romance adolescente, com uma protagonista deslocada, nova na cidade e no colégio, e que acaba se apaixonando por um sujeito encantador, ainda que misterioso (talvez a única ressalva que mereça ser feita aqui é o fato de o filme, e, imagino, também o livro, não apelarem para o velho clichê da protagonista sendo rejeitada pelos alunos de sua nova escola, já que aqui a personagem de Kristen Stewart se torna a queridinha da turma desde sua chegada). A diferença, é que esse é um romance adolescente com vampiros. E como esses seres costumam despertar imenso fascínio em todos nós, essa mistura entre mitologia dos vampiros com o clima de romance jovem acabou alcançando um imenso sucesso com o público adolescente. E é aí que mora o maior problema de Crepúsculo: justamente por ser explicitamente voltado para os mais jovens, o filme não demonstra um pingo de ousadia. A história é batida, extremamente previsível, os personagens se resumem a estereótipos e as cenas com os vampiros são, paradoxalmente, quase completamente ausentes de sangue. Sem contar o elenco, bastante inexpressivo, a começar pelo casal de protagonistas, que não consegue criar o mínimo de empatia com o espectador (ainda que a bela Stewart esteja ligeiramente melhor em cena do que Robert Pattinson, que definitivamente ainda tem muito a melhorar como ator).
Contando ainda com um trio de vilões que beiram o ridículo, e que entram em cena somente para criar alguma ação na história de amor entre Bella e Edward, mas que acabam por piorar ainda mais as coisas (ainda mais se levarmos em conta a maneira como é construído o personagem James, que acaba se tornando o principal vilão da trama, e que simplesmente não tem nenhuma razão para agir da maneira como age, sendo mesmo apenas uma desculpa para o personagem de Pattinson demonstrar seus atributos e para a Bella de Stewart ser colocada à mercê de alguma ameaça), Crepúsculo é um filme que até funciona como uma diversão descompromissada, para se assistir numa tarde ociosa. Mas, para quem ao menos passou perto de filmes mais sérios com vampiros como protagonistas (como, por exemplo, Entrevista com o Vampiro, ou Drácula de Bram Stoker), esse aqui é simplesmente uma grande bobagem.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Sete Vidas



Assim como no belo À Procura da Felicidade, esse Sete Vidas, segunda parceria entre o diretor italiano Gabriele Muccino e Will Smith, permanece se equilibrando sobre uma tênue linha que separa um drama sensível de um melodrama que beira a auto-ajuda. No entanto, se o longa de 2006 transbordava em emoção, fazendo-nos relevar os lugares-comuns nos quais se alicerçava (já que, no fim das contas, o filme era mais uma daquelas batidas celebrações do american way of life, da possibilidade de ascensão social pelo próprio esforço na sociedade norte-americana), esse Sete Vidas acaba soando frio demais, e, quando tenta ser mais emocional, descamba para um artificialismo que incomoda bastante.

É bem verdade que o filme tem lá seus méritos, sendo Will Smith o mais óbvio deles: vivendo um momento esplendoroso em sua carreira, o astro entrega mais uma atuação carregada de carisma, ainda que não alcance a força de seus melhores desempenhos, como em Ali e no já citado À Procura da Felicidade. É graças a Smith que conseguimos possuir algum tipo de interesse no protagonista de Sete Vidas, que, nas mãos de alguém menos talentoso, facilmente se transformaria em um mártir artificial, em um herói romântico irritante. Os coadjuvantes do longa também funcionam bem de forma geral, com destaque para Rosario Dawson, bastante verdadeira no papel de uma mulher doente e sofrida, e para Woody Harrelson, verdadeiramente emocionante, ainda que em participação pequena (sua cena ao telefone com Smith é de cortar o coração, graças à imensa competência de Harrelson). Além disso, Muccino é um diretor talentoso, e cria alguns grandes momentos em seu filme, como a conversa de Smith com uma idosa doente, boa parte das cenas envolvendo o protagonista e a personagem de Dawson e aquelas em que o mesmo interage com uma água-viva, que são as seqüências mais belas, esteticamente falando, do longa (sem contar o já citado diálogo entre Smith e Harrelson ao telefone).

Mesmo assim, Sete Vidas tem um problema grave, que afeta todos esses seus pequenos êxitos, e que faz com que o filme simplesmente não funcione: ele exige do espectador um grau exageradamente elevado de abstração da realidade e de crença naquela história que está sendo contada, sem que Muccino e o roteirista Grant Nieporte contribuam muito para o surgimento natural dessa cumplicidade (como ocorria em À Procura da Felicidade, onde, mesmo sabendo do caráter de excessão daquela história contada, acreditávamos verdadeiramente nela). Daí, fica difícil torcer pelo personagem de Smith, fica difícil acreditar na série de acontecimentos que se desenrola diante de nossos olhos, e, principalmente, fica muito difícil se emocionar com o triste epílogo do filme, mesmo que reconheçamos sua beleza e seu poder dramático. Após a cena final de Sete Vidas, acabei, inevitavelmente, me lembrando do açucarado A Corrente do Bem, ainda que o filme de Muccino não possua nem metade dos exageros melodramáticos que aquele longa possuía. Mas, de qualquer forma, essa é uma comparação que não faz bem a nenhum filme.


Sete Vidas 
Seven Pounds, 2008
Gabriele Muccino

sábado, 27 de dezembro de 2008

No cinema: Romance

[romance]

Romance
Romance, 2008
Guel Arraes


Romance é um filme que quase "chega lá". Primeiramente, o longa é um prazer para quem acompanha a carreira de Guel Arraes, e vê o salto de maturidade que esse trabalho representa em relação às suas comédias populares sobre o Nordeste brasileiro (como O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro), que, apesar de divertidas e valorosas em muitos sentidos, provavelmente já deram o que tinham que dar (e o fracasso do apenas razoável O Coronel e o Lobisomem aponta nessa direção). E esse salto não se dá apenas pela mudança de gênero, mas mesmo pela abordagem de Arraes: Romance é um filme leve e descompromissado sim, mas possui um olhar bastante apurado acerca dos universos que retrata (o do teatro e o da TV), fazendo críticas e brincadeiras com eles com a maturidade necessária para que o filme não se tornasse um amontoado de lugares-comuns. Nesse sentido, Arraes acerta profundamente na composição de seu elenco, encabeçado por um ótimo Wagner Moura e por uma ainda estonteante Letícia Sabatella, mas que tem em um José Wilker com um timing perfeito sua grande sacada para criticar os bastidores da TV.
Curiosamente, é justamente na história de amor que conta que Romance comete seus principais erros. Digo curiosamente porque, primeiramente, o casal Moura e Sabatella funciona perfeitamente, ao mesmo tempo que todo o paralelo estabelecido entre a história do casal e a de Tristão e Isolda acaba também funcionando, conseguindo a proeza de não soar forçado em excesso. No entanto, Arraes peca, primeiramente, ao contar sua história de uma forma demasiadamente acelerada: o tempo passa, mas só os personagens percebem. Em alguma medida, essa escolha remete ao maravilhoso Closer - Perto Demais, mas, infelizmente, Romance está muito longe de alcançar toda a dureza e sinceridade do filme de Mike Nichols.
O segundo equívoco de Arraes está no personagem de Vladimir Brichta. Apesar do desempenho competente do ator, Arraes parece encaixá-lo na trama simplesmente para criar um triângulo amoroso com o casal de protagonistas, o que acaba soando exageradamente forçado e artificial. O envolvimento do personagem de Brichta com a de Sabatella ocorre todo muito rapidamente, e em nenhum momento o espectador consegue realmente acreditar naquela paixão, o que acaba por comprometer o êxito do filme.
São nesses pequenos deslizes, que parecem mais resquícios de alguns vícios televisivos, já que boa parte de seu trabalho até aqui estava ligado a esse meio, que Guel Arraes perde a oportunidade de entregar uma pequena grande obra, para entregar apenas um bom filme. O que não deixa de ser um passo importante nessa sua transição de um cinema burlesco para algo mais sério e profundo.

sábado, 20 de dezembro de 2008

No cinema: Queime Depois de Ler

[queime depois de ler]

Queime Depois de Ler
Burn after Reading, 2008
Joel Coen & Ethan Coen

Os irmãos Coen são conhecidos, principalmente, por suas comédias de humor negro, mas, na última vez que se aventuraram pelo gênero, entregaram o fraco Matadores de Velhinhas, o que acaba, de certa forma, aumentando a responsabilidade em cima desse Queime Depois de Ler (além do fato óbvio de ser o primeiro filme da dupla após a consagração no último Oscar, com a obra-prima Onde os Fracos Não Têm Vez). No entanto, como costumam fazer com certa freqüência, os Coen voltam aqui a surpreender, com uma pequena pérola.
Na verdade, Queime Depois de Ler repete a fórmula que a dupla de cineastas tanto utiliza em seus filmes: a história de alguém que, por ambiciar algo, acaba passando por cima de outras pessoas e dando início a uma série de tragédias que parece não ter fim. Foi assim em Fargo, foi assim em O Homem que Não Estava Lá e foi assim, ainda que seguindo por outros caminhos, em Onde os Fracos Não Têm Vez. No entanto, ao contrário destes três filmes, que possuem uma atmosfera dramática mais carregada (ainda que Fargo não deixe de ser, em certo sentido, também uma comédia), em Queime Depois de Ler estamos no campo da "comédia de erros", no qual os Coen geralmente se saem muito bem. E o que se vê na tela é uma verdadeira escalada de erros, de confusões e de mal-entendidos protagonizados por uma série de personagens que simplesmente não conseguem enxergar o que está acontecendo a seu redor, e que são tomados por uma assustadora onda de estupidez.
E mesmo que seja uma espécie de continuação informal dos dois outros "episódios" do que os irmãos Coen chamam de "trilogia dos idiotas", E Aí, meu Irmão, Cadê Você? e O Amor Custa Caro, ambos protagonizados pelo mesmo George Clooney de Queime Depois de Ler, quem sintetiza essa estupidez com perfeição é o personagem de Brad Pitt. Absolutamente hilário em todas as suas cenas, Pitt rouba o filme com a simplicidade de seu Chad Feldheimer, um sujeito genuinamente inocente, e extremamente encantador por isso. São dele os melhores momentos de Queime Depois de Ler, como a conversa ao telefone com o personagem de John Malkovich (excelente) e a cena do armário com Clooney. Ainda que sua participação não seja muito longa, o que se tem aqui é um dos melhores desempenhos de sua carreira, e é difícil não ficar com a imagem de seu personagem na cabeça após o término do filme. Porém, a burrice de Feldheimer parece, de alguma forma, contagiar outros personagens do filme. Na verdade, quase todos: do paranóico agente do Tesouro vivido por um divertido George Clooney (e autor de um bizarro invento, que gera uma das cenas mais engraçadas do longa) à professora de ginástica interpretada de forma inspirada por Frances McDormand. E é curioso que, no meio do festival de burrices que presenciamos, os dois agentes da CIA que observam todo o caso (vividos por J.K. Simmons e David Rasche), que são uns dos poucos a demonstrar certa racionalidade, também sejam responsáveis por momentos de humor extremo, exatamente pela perplexidade com que acompanham o desenrolar dos fatos, sem conseguir entender muita coisa.
Contando com uma melancolia nas entrelinhas de sua narrativa, e que acaba movendo seus personagens em seus atos desastrosos, Queime Depois de Ler é um legítimo exemplar do cinema dos irmãos Coen, que cativa pelo talento dos diretores em fazer humor de situações trágicas sem que seus filmes soem ofensivos. Talvez o segredo esteja em tornar seus personagens verdadeiramente humanos, algo que os Coen sabem fazer como poucos. E é também a resposta inesperada a quem esperava outro filme denso e sério após Onde os Fracos Não Têm Vez. Resposta inesperada e, talvez justamente por isso, genial.

Um Novo Olhar: O Homem que Não Estava Lá

[o homem que não estava lá]

O Homem que Não Estava Lá
The Man Who Wasn't There, 2001
Joel Coen


Apesar de elogiado, e mesmo premiado, na época de seu lançamento, O Homem que Não Estava Lá acabou sendo um daqueles filmes meio esquecidos da carreira dos irmãos Coen, eclipsado por suas maiores obras, Gosto de Sangue, Fargo e o recente Onde os Fracos Não Têm Vez. Grande injustiça. Apesar de ser, de fato, inferior a esses três filmes, esse longa de 2001 representa um dos melhores momentos do cinema dos Coen.
Esteticamente, O Homem que Não Estava Lá é o trabalho mais rebuscado da dupla. Contando com uma das mais belas fotografias que o cinema recente presenciou (cortesia, como de costume, de Roger Deakins), o filme marca por suas imagens em preto e branco meticulosamente criadas, fundamentais para enviar o espectador aos E.U.A. da década de 1950, e à vida sufocante e frustrada do protagonista, o barbeiro Ed Crane. É difícil pensar esse filme sem o trabalho de Deakins, e, nesse sentido, a fotografia em preto e branco se torna um elemento essencial da narrativa de O Homem que Não Estava Lá, uma vez que contar essa história em cores seria, muito provavelmente, impossível.
A fotografia, aliás, foi responsável pela única indicação do filme ao Oscar 2002 (sendo derrotado por O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel), o que foi uma pena. O Homem que Não Estava Lá poderia, tranqüilamente, ter angariado indicações para os Coen (melhor filme, direção e roteiro) e para o seu excepcional elenco. A começar por Billy Bob Thornton, que, mais do que o protagonista, é o dono do filme. Onipresente, e quase sempre calado, o ator cria um personagem enigmático em sua simplicidade: Ed Crane é um sujeito comum, ordinário, um barbeiro. Mas que, como acabaremos por testemunhar ao longo do filme, carrega em si um enorme potencial para a destruição. Thornton consegue tornar tal personagem identificável para o espectador, levando-nos mesmo a torcer por ele, diante das inúmeras tragédias de sua vida. No entanto, há de se valorizar os trabalhos dos coadjuvantes de O Homem que Não Estava Lá, Frances McDormand, James Gandolfini e, principalmente, Tony Shalhoub, que diante da força da presença de Thornton, não se deixam intimidar, e entregam desempenhos não menos que extraordinários (e merece destaque também a participação da ainda razoavelmente desconhecida Scarlett Johansson, competente no papel de uma espécie de protegida de Crane, a garota responsável pelos momentos em que o barbeiro consegue encontrar alguma esperança na vida).
A verdade é que O Homem que Não Estava Lá é um filme extremamente difícil de se definir. Em muito, é uma história típica do cinema dos Coen, onde um sujeito comum, na busca por melhorar de vida, acaba iniciando uma cadeia de acontecimentos trágicos que parece não ter fim, e que acaba consumindo todos ao seu redor, sendo Fargo o melhor exemplo desse tipo de história contada pelos irmãos, ainda que aqui exista uma diferença fundamental: se em Fargo a história era vista por um olhar externo àquelas tragédias, o da policial vivida por Frances McDormand, aqui ela é contada pelo agente principal das tragédias, o que faz com que o espectador se importe muito mais com o Ed Crane de Billy Bob Thornton do que com o Jerry Lundengaard de William H. Macy, o que não deixa de ser intrigante, já que, no fim das contas, os dois cometeram atitudes reprováveis por conta de um objetivo em comum: sair da mediocridade de suas vidas comuns. No entanto, o filme é mais do que isso. É um drama poderoso, é uma experiência existencialista, é um noir intrigante, e é mesmo uma ficção-científica. Talvez seja essa deliciosa mistura entre cortes de cabelo, lavagem a seco e disco voadores que torne O Homem que Não Estava Lá um filme tão fascinante.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

No cinema: Vicky Cristina Barcelona

[vicky cristina barcelona]

Vicky Cristina Barcelona
Vicky Cristina Barcelona, 2008
Woody Allen


Verdade seja dita: Vicky Cristina Barcelona é um imenso clichê. Desde sua história, lugar-comum das turistas norte-americanas na Europa que descobrem um novo mundo e a si próprias ao entrar em contato com uma cultura diversa, aparentemente mais liberal, até a abordagem dos personagens, arquétipos perfeitos da intelectual bem-comportada e recalcada, da amiga irresponsável e aventureira na busca pelo amor e do homem latino, conquistador, genial e rebelde. Então, por que Vicky Cristina Barcelona é tão bom ? A resposta é absurdamente óbvia: por causa de Woody Allen.
Dando seqüência a uma sucessão de filmes bem-sucedidos (que começou com Melinda e Melinda, e sofreu uma breve interrupção com o fraquinho Scoop), o diretor mostra, mais uma vez, o quanto os novos ares da Europa fez bem ao seu cinema (algo que Match Point e O Sonho de Cassandra já haviam demonstrado). No entanto, aqui, diferentemente de seus filmes em Londres, a cidade-cenário assume um papel mais importante na narrativa, e se torna uma força fundamental de Vicky Cristina Barcelona - a princípio, o olhar de Allen sobre Barcelona parece um mero passeio turístico, mas, aos poucos, o diretor vai tornando a cidade uma personagem de sua história, e, no fim das contas, é quase possível para o espectador sentir o calor de Barcelona que emerge da tela. Talvez seja esse o maior mérito de Allen, o de ir além da visão de cartão postal para turista ver da cidade catalã.
Barcelona, no entanto, não é uma personagem estanque no filme de Allen: ela interage e exerce enorme poder sobre os outros personagens de Vicky Cristina Barcelona. E aqui surge o outro grande trunfo do longa, seu maravilhoso elenco. É interessante porque, mesmo na escolha dos atores do filme, Allen também parece seguir determinadas convenções: não há nenhuma surpresa na escalação de Scarlett Johansson como a jovem irresponsável em busca de um grande amor, ou de Javier Bardem no papel do homem latino galanteador. Mas o diretor conduz seus atores de uma forma tão simples, mas tão magistral, que essas escolhas acabam passando do previsível para o genial. O trio Bardem-Johansson-Rebecca Hall está impecável, incorporando-se aos seus arquétipos de uma forma surpreendentemente genuína, tornando seus personagens bastante verossímeis e interessantes. Talvez Bardem seja o melhor dos três em cena, com sua presença arrebatadora e complexidade dramática (que se torna ainda mais clara quando surge em cena a personagem María Elena), mas há de se destacar a boa interpretação de Johansson, algo que não se via há algum tempo (talvez desde Match Point), e a surpresa agradável que é Hall. No entanto, tudo muda, para melhor, quando Penélope Cruz surge em cena. Intensa e explosiva, sua María Elena é um furacão que passa por Vicky Cristina Barcelona de forma a não deixar ninguém intacto, e Cruz aproveita a personagem para entregar um dos melhores desempenhos de sua irregular carreira. Vendo-a em cena, não fica muito difícil entender a admiração e paixão sentidas pelo personagem de Bardem por sua ex-esposa. E é impressionante e admirável a sintonia entre o casal de atores, que torna a ligação entre seus personagens profundamente verdadeira. É a presença de Cruz como María Elena, uma personagem que parece vinda diretamente de um filme de Pedro Almodóvar, que eleva o filme a um novo patamar, e confirma o quanto o cinema de Woody Allen, mesmo repetindo temas e situações, tem uma capacidade enorme de ainda ser original.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Alguns filmes - Novembro

[alguns filmes - novembro]

O Invasor
O Invasor, 2001
Beto Brant


A Menina Santa
La Niña Santa, 2004
Lucrécia Martel


Do Outro Lado da Lei
El Bonaerense, 2002
Pablo Trapero


O Tesouro de Sierra Madre
The Treasure of Sierra Madre, 1948
John Huston


Vidas Amargas
East of Eden, 1955
Elia Kazan


As Crônicas de Nárnia: Príncipe Caspian
The Chronicles of Narnia: Prince Caspian, 2008
Andrew Adamson


O Búfalo da Noite
El Bufalo de la Noche, 2007
Jose Hernandez Aldana


Longe Dela
Away from Her, 2007
Sarah Polley


Nixon
Nixon, 1995
Oliver Stone


Amargo Pesadelo
Deliverance, 1972
John Boorman


O Invasor é um filme do qual esperava bem mais. Voltando no tempo até o ano de seu lançamento, é até compreensível seu sucesso, mas vendo-o hoje, inserido num cinema brasileiro pós-Cidade de Deus e Tropa de Elite, é impressionante como o filme de Beto Brant perde força. Os conflitos dos personagens soam excessivamente previsíveis e dramaticamente mal conduzidos, assim como sua abordagem de um submundo do crime parece datada e pouco inspirada (as cenas em que os personagens de Paulo Miklos e Mariana Ximenes visitam a periferia de São Paulo, por exemplo, e a câmera acompanha os rostos dos moradores da região é irritantemente clichê). Se há algo que sobrevive em O Invasor, é o seu elenco: à exceção de Alexandre Borges e Malu Mader, que entregam interpretações que são simplesmente mais do mesmo, os outros atores encarnam seus personagens com paixão, tornando-os bastante críveis. Mariana Ximenes, Marco Ricca e principalmente um surpreendente Paulo Miklos são os verdadeiros responsáveis pelo êxito que O Invasor ainda consegue alcançar.
A Menina Santa e Do Outro Lado da Lei são dois exemplares de qualidade do cinema argentino recente, obras de dois dos mais badalados cineastas desse país, Lucrécia Martel e Pablo Trapero. No entanto, são filmes muito diferentes. O primeiro é um drama de difícil digestão, mas de uma sensibilidade absurda. Martel filma a suposta inocência das meninas Amália e Josefina com extrema intimidade e intimismo, e torna o envolvimento da primeira com o médico vivido por Carlos Belloso profundamente interessante, ao mesmo tempo que enigmático e instigante, para o público. Mas o que torna A Menina Santa um filme tão maravilhoso é realmente o olhar da diretora, que foge de lugares-comuns e sensacionalismos ao abordar a atração entre duas figuras tão diferentes, optando pela delicadeza e cuidado na composição desse drama. E o final em aberto, que promove uma ruptura justamente em um momento onde a história poderia descambar para soluções dramáticas fáceis e/ou sensacionalistas, é uma prova do brilhantismo de Martel. Belo filme, que ainda conta com desempenhos excepcionais do trio de atrizes Mercedes Morán, Maria Alche e Julieta Zylberberg. Já Do Outro Lado da Lei é, se pudéssemos fazer esse tipo de comparação, uma espécie de Tropa de Elite argentino sem toda a carga de polêmica e de intenções de desvendar a organização social de um país que o filme de José Padilha tem. Trapero faz, através do personagem de Jorge Román, um retrato melancólico e decadente da corrupta polícia de Buenos Aires, mas, ao invés de focar no funcionamento desta, o diretor prefere manter seu olhar no protagonista, em seus dramas pessoais. Nesse sentido, Román entrega uma excelente interpretação como o introspectivo Zapa. Mas o filme não consegue ser muito mais do que apenas um bom drama. Funciona em alguns momentos, mas em outros soa arrastado e sem muita inspiração. Mas não deixa de valer a pena assistí-lo.
Apesar de ser um dos maiores clássicos do cinema norte-americano, e uma das grandes obras do grande John Huston, confesso que só me interessei realmente por O Tesouro de Sierra Madree ao saber que Paul Thomas Anderson o teve como principal referência ao realizar a obra-prima Sangue Negro. E vendo-o, dá para entender o porquê: os dois filmes, apesar das diversas diferenças que possuem entre si, compartilham a temática da ganância humana, e da capacidade que determinadas riquezas naturais têm de elevar essa ganância a níveis assustadores. Se em Sangue Negro era o petróleo, aqui temos o ouro de Sierra Madre, que, aos poucos, transformam dois homens aparentemente bons em seres que beiram a selvageria e, no caso do personagem de Humphrey Bogart, em um verdadeiro monstro. E Huston consegue retratar essa transformação com maestria, não permitindo que nenhum aspecto desse processo soe artificial, criando uma trama que, se prende pelo tom de aventura que assume em muitos momentos, encanta pela densidade dramática que possui em sua essência, e que vem à tona quando necessária. No elenco, O Tesouro de Sierra Madre traz ao menos duas grandes interpretações: a do carismático Walter Huston (pai do diretor), que funciona muito bem como a "voz da razão" em meio à insanidade que toma conta dos exploradores, ao mesmo tempo que encanta por sua simplicidade e honestidade de caráter, ainda que este possua falhas reconhecíveis, e a excepcional presença de Humphrey Bogart, que cria uma figura verdadeiramente assustadora e sombria, e que se torna ainda mais impressionante por termos conhecido o personagem em um momento anterior, quando se revela apenas um homem comum em busca de uma oportunidade. Bogart é o melhor ator do filme, é aquele que sintetiza a tragédia provocada pela ganância que John Huston busca mostrar, mas o que verdadeiramente move O Tesouro de Sierra Madre, o que o torna tão rico, complexo e atual, mesmo tendo sido lançado há 60 anos, é a interação entre os três protagonistas, fundamental para a compreensão da degradação moral retratada por Huston.
Outro grande clássico do cinema norte-americano, e responsável pela revelação do fenêmeno James Dean, Vidas Amargas é um filme do qual esperava bem mais. Elia Kazan, então recém-saído de seu maravilhoso Sindicato de Ladrões, faz um filme aquém das expectativas, que, apesar de contar uma grande história, peca por apresentá-la com toques excessivamente melodramáticos em muitos momentos, e por contar com personagens que soam exageradamente inocentes e puros de coração para parecem concretos (aliás, esse era um dos problemas que também havia enxergado em outro filme de Dean, Juventude Transviada). No entanto, o filme possui seus méritos: primeiramente, há um elenco muito bom, que vai de um ótimo James Dean (que, apesar de fazer praticamente o mesmo papel que faria depois em Juventude Transviada, o do jovem deslocado e amargurado, era muito bom ator, e consegue aqui dar densidade ao drama de seu personagem) à pequena, mas marcante, participação de Jo Van Fleet, como a mãe do rapaz. Além disso, o talento de Kazan para criar cenas memoráveis volta a funcionar em Vidas Amargas, que se revela dotado de alguns momentos absolutamente inspirados, especialmente aqueles que envolvem a relação conturbada entre o personagem de Dean e seu pai, vivido com enorme competência e emoção por Raymond Massey (incluindo aqui a belíssima cena final). Mas, ainda assim, é um filme que poderia, e deveria, ser bem melhor, e uma história que mereceria uma nova versão cinematográfica.
Apesar de consciente de suas limitações e equívocos, confesso ser um admirador da série As Crônicas de Nárnia. Me empolguei com as aventuras dos irmãos Pevensie em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas de uma forma que não imaginava acontecer, e, por isso, a expectativa com essa continuação era grande. E, repito, apesar de reconhecer que há problemas em As Crônicas de Nárnia: Príncipe Caspian, novamente me encantei com essa história. Os personagens dos irmãos Pevensie são irritantes em vários momentos e os atores mirins não são tão bons quanto, por exemplo, os da série Harry Potter, mas Adam Adamson consegue construir uma narrativa verdadeiramente envolvente e empolgante, que não tem a pretensão de ser tão séria quanto O Senhor dos Anéis, por exemplo, mas, apesar de possuir diversos elementos infantis, consegue possuir maturidade suficiente para conquistar outros públicos. E em Príncipe Caspian, Adamson consegue dar um passo além em relação ao primeiro filme da série, tornando a saga dos Pevensie mais sombria (o que gera cenas de batalha mais violentas e momentos que beiram o terror, como a excelente cena do ritual para ressuscitar a Feiticeira Branca), inserindo novos personagens bastante interessantes, que surpreendem por irem além de estereótipos e ganharem contornos mais humanos nas mãos do diretor, como, por exemplo, o vilão da história, vivido por Sergio Castellitto, e o anão interpretado pelo expressivo Peter Dinklage, e criando pelo menos uma grande cena, a da luta entre o rei Miraz e Peter Pevensie, longa, exaustiva e convincente. É um grande épico de fantasia, emocionante e contagiante como poucos vêm conseguindo nessa grande leva de filmes do gênero que vêm sendo lançados.
O Búfalo da Noite é um filme equivocado do início ao fim. Simplesmente isso. Não é uma bomba, um filme intragável, mas que, de forma impressionante, não consegue acertar em quase nada, mesmo tendo uma história com potencial nas mãos. Escrito por Guillermo Arriaga, baseando-se em seu próprio livro, o filme talvez tenha como maior problema a falta de um diretor talentoso para conduzir a história e o elenco. A narrativa, com suas idas e vindas no tempo, parece deixar uma série de pontas soltas, e os personagens, que poderiam ser, no mínimo, fascinante, são muito mal desenvolvidos, soando extremamente desinteressantes na maior parte do tempo. E o mote principal da trama, a caixa com lembranças que o personagem de Gabriel González deixa para o de Diego Luna, parece ser simplesmente abandonado a partir de um certo momento, jogando fora de vez qualquer interesse que poderia ser despertado em relação àqueles sujeitos. Arriaga nunca admitiria isso, mas falta um Alejandro González Iñárritu a O Búfalo da Noite.
Longe Dela é um drama extremamente simples, mas absurdamente delicado. Sem possuir grandes inovações narrativas ou estéticas, o filme aposta todas suas fichas no seu elenco e na força dramática da temática abordada, o mal de Alzheimer, e isso não diminui em nada a qualidade do filme. No primeiro aspecto, a diretora Sarah Polley confia totalmente em sua dupla de atores, que não decepcionam. Julie Christie e Gordon Pinsent entregam desempenhos estupendos: a primeira, emocionando ao encarnar de forma extremamente convincente os dramas gerados pela presença do Alzheimer, a consciência de sua condição e a redução de sua personalidade a um estágio aparentemente irreversível; e o segundo, transmitindo a dor do homem que vê seu grande amor simplesmente não mais o reconhecer, e pior, trocá-lo por outro. Pinsent cria um sujeito angustiado, profundamente humano e dotado de um amor absurdamente gigantesco por sua esposa, sentimento que transborda da tela sem nunca precisar ser piegas. Esse, aliás, é talvez o maior mérito de Polley: fazer de Longe Dela um pequeno grande filme, genuinamente humano e emocional sem apelações sentimentalóides. E o belíssimo final está lá para coroar seu trabalho.
Vindo de Oliver Stone, Nixon é um filme profundamente decepcionante. Extremamente longo, pretensioso e confuso, a cinebiografia do polêmico presidente norte-americano é um trabalho pouco inspirado do diretor, no qual fica difícil captar seu posicionamento político em relação a Richard Nixon: em alguns momentos, Stone parece admirá-lo, e assumir o ponto de vista do político enquanto o seu ponto de vista, enquanto, em outros, o diretor parece criticar suas opções políticas, e colocá-lo como um sujeito extremamente retrógrado e despreparado. Fica clara a intenção de pintar Richard Nixon como um sujeito paradoxal, que ninguém nunca realmente conheceu (como é dito em determinada passagem). O que fica obscuro é o que Stone deseja com seu filme. Além disso, há Anthony Hopkins. O ator entrega um grande desempenho, dramaticamente poderoso, criando um personagem fascinante e que, com todos seus defeitos, acaba conquistando o espectador. No entanto, não acreditamos realmente que aquele seja Richard Nixon, mas apenas um personagem, o que se dá, em muito, pela pouca semelhança física entre o ator e o presidente. Numa cinebiografia como essa, esse fator acaba pesando negativamente. Salvam-se alguns bons momentos (como o duelo particular entre Nixon e John Kennedy, que gera um belíssima fala de Hopkins acerca das maneiras distintas como o povo americano exerga os dois políticos) e a oportunidade de vermos, a partir da ótica dos bastidores do poder, alguns acontecimentos chave do século XX. E Richard Nixon continua esperando um retrato melhor (não necessariamente favorável) no cinema.
Assistindo a Amargo Pesadelo, tive, em muitos momentos, a impressão de estar assistindo a um filme de Sam Peckinpah, ou, pelo menos, a um trabalho muito próximo de seu excepcional Sob o Domínio do Medo. Pois a maneira como John Boorman constrói a narrativa desse seu longa chega bem perto do terror e tensão gerados pelo filme de Peckinpah. O que não é pouco. Boorman aproveita-se de forma magistral do ambiente naturalmente perigoso em que filma, para investir em um thriller pesado, no qual a relação entre o quarteto de personagens, que a princípio não parecia trazer grandes problemas, mas que aos poucos vai se recheando de tensão, culminando na inesquecível seqüência do estupro e do assassinato, é o centro do poder dramático do filme. Boorman não tem nenhuma pressa em estabelecer as características principais de seus protagonistas, muito bem defendidos por quatro grandes atores (Jon Voight, o melhor do elenco, Burt Reynolds, Ned Beatty e Ronny Cox), o que só aumenta o envolvimento do espectador com o desenrolar de sua jornada, assim como não tem pudor em ser violento e ousado quanto tem de ser. É, sem dúvidas, um dos maiores suspenses que o cinema norte-americano já produziu.


terça-feira, 2 de dezembro de 2008

No cinema: Rede de Mentiras

[rede de mentiras]

Rede de Mentiras
Body of Lies, 2008
Ridley Scott


Há de se dizer que a temática do terrorismo no cinema atual, se já gerou alguns grandes filmes, vem agora tornando-se um tanto irritante e enfadonha: praticamente todo ano temos uma nova obra a tratar do assunto lançada nos cinemas, o que acaba por criar uma espécie de barreira de preconceito em público e crítica ao assistir a mais um filme desses. Portanto, é justamente por conseguir romper essa barreira que Ridley Scott, saído do excepcional O Gângster, merece ser aplaudido por esse Rede de Mentiras.
O mais importante para o êxito do filme é a fuga de armadilhas esperadas de um tema tão em voga como o terrorismo, como o excessivo engajamento político, que, geralmente misturado com a superficialidade e falta de ousadia das grandes produções norte-americanas, acaba gerando filmes que ficam numa espécie de "meio do caminho", que querem ser politicamente relevantes mas ao mesmo tempo não têm a coragem suficiente para enfrentar quem deve ser enfrentado (o fraco Diamante de Sangue, apesar de tratar de uma temática diversa da abordada aqui, é um exemplo perfeito disso). Scott não busca fazer um filme a-político, algo que seria impossível em se tratando do universo abordado, mas ele acerta profundamente ao não fazer de um discurso político, ou melhor, de sua opinião sobre as questões discutidas por Rede de Mentiras, o centro da narrativa, fazendo com que essa opinião surja nas entrelinhas, de forma sutil. Obviamente, nesse ponto o roteiro de William Monahan merece crédito, principalmente por permitir que seus personagens sejam suficientemente desenvolvidos para que nos interessemos por seus destinos, e para que a complexa trama de espionagem não se sobreponha a seus dramas pessoais: no limite, a força maior do filme está nas relações estabelecidas entre esses personagens, especialmente entre o trio Roger Ferris/Ed Hoffman/Hani, que fazem Rede de Mentiras ganhar força dramática suficiente para merecer ser levado a sério. Num "subgênero" já tão explorado como o "thriller de espionagem", onde clichês vem se repetindo cada vez mais (e o uso essencial da tecnologia nesse mundo é um desses clichês, que também reaparece aqui), e numa temática tão recorrente no cinema contemporâneo, o trabalho de Scott se diferencia por apostar, acima de tudo, no humano.
Obviamente, há aqui um componente fundamental que merece ser destacado: o elenco de Rede de Mentiras. Contando com coadjuvantes competentes, o filme chama a atenção realmente pelos três atores que interpretam o trio de personagens citados anteriormente. Leonardo DiCaprio, sem dúvidas vivendo um grande momento em sua carreira, consegue tornar verossímil um personagem que poderia facilmente descambar para o bom-mocismo exagerado, além da proeza de verdadeiramente "sumir" naquele universo, fazendo com que de fato acreditemos que seu Roger Ferris pode se misturar com os inimigos sem ser reconhecido (DiCaprio, tal como Ferris, submerge de tal forma naquele universo, que até esquecemos que estamos diante do mesmo rosto jovial de um dos maiores astros de Hollywood). Por um outro lado, num desempenho igualmente magnífico, Russell Crowe cria aquele que talvez seja o personagem mais factível de Rede de Mentiras, o do burocrata inescrupoloso que comanda, dos EUA, a missão de Ferris. No entanto, Crowe empresta tamanha veracidade ao seu Ed Hoffman, tamanha simplicidade em seus atos (e as cenas onde aparece realizando tarefas familiares ao mesmo tempo que dá ordens a seu subordinado são fundamentais para isso), que seu personagem acaba por tornar-se mais do que um mero "vilão" para o espectador: Hoffman é apenas um homem, ainda que dotado de poderes absurdos. Por fim, há o excelente Mark Strong, que faz de Hani, chefe da inteligência jordaniana e aliado do personagem de DiCaprio, um sujeito encantador por seu carisma, por seu código de honra e por sua presença imponente em cena. Se quiséssemos encontrar um herói no mundo cinzento de Rede de Mentiras, este seria o personagem de Strong. Mas a verdade é que no universo abordado por Scott, qualquer maniqueísmo que busque distinções do tipo heróis e vilões é excessivamente reducionista.
No entanto, nem tudo no filme é perfeito. Há, por exemplo, um relacionamento amoroso que, por mais que seja desenvolvido com cuidado pelo roteiro de Monahan e defendido com competência pelo casal que o protagoniza, soa fora do lugar na trama, o que acaba enfraquecendo-a em determinados momentos (as cenas de Ferris na casa de Aisha, por exemplo, são bem conduzidas, sem exageros românticos ou dramáticos, e provavelmente se encaixariam bem em qualquer filme, mas aqui soam fora do tom). E há também uma impressionante cena de tortura nos momentos finais da narrativa, mas que com certeza elevaria Rede de Mentiras a um patamar ainda maior caso fosse levada até o fim (ainda que a solução encontrada para interrompê-la não seja tão artificial quanto possa aparecer, principalmente se levar-se em conta quem protagoniza tão solução). Erros que impedem Rede de Mentiras de se tornar uma obra-prima, mas não um grande filme.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Boogie Nights - Prazer Sem Limites



Desde que Boogie Nights foi lançado nos cinemas, há mais de dez anos, muita coisa aconteceu na carreira de Paul Thomas Anderson. O diretor se consagrou com a obra-prima Magnólia, lançou o menor, mas subestimado, Embriagado de Amor e se consolidou como um dos maiores diretores do cinema contemporâneo com o impressionante Sangue Negro. No entanto, é muito bom ver o quanto a história de Dirk Diggler envelheceu bem, o quanto Boogie Nights continua sendo o grande filme que já mostrava ser naquele ano de 1997. Anderson, então apenas em seu segundo longa-metragem, já demonstrava impressionante domínio na direção, com seu recorrente de planos-sequência que conduzem o espectador (e o inicialmente inocente protagonista) pelo universo do cinema pornô da década de 1970. 

O diretor também começava ali a chamar atenção por outra de suas outras grandes qualidades: o talento para arrancar grandes desempenhos de seus atores. Se em Magnólia Anderson nos premiaria com aquela que talvez seja a melhor atuação da carreira de Tom Cruise; se em Embriagado de Amor ele conseguiria a proeza de fazer com que Adam Sandler apresentasse uma veia dramática inimaginável (sem contar sua parceria com um ator conhecidamente genial como Daniel Day-Lewis em Sangue Negro, que gerou um trabalho tão espetacular quanto se poderia esperar); em Boogie Nights, Anderson não só revelou o ótimo, e muitas vezes subestimado, Mark Wahlberg, como compôs um impressionante mosaico de coadjuvantes no qual todos, sem nenhuma exceção, entregam atuações impecáveis. Don Cheadle, Phillip Seymour Hoffman, William H. Macy, Luiz Gusmán, Heather Graham, John C. Reilly, Alfred Molina ... não há no elenco de Boogie Nights alguém que não tenha um grande momento em cena e que não contribua para a veracidade da jornada pela qual Paul Thomas Anderson leva o espectador. Mas há dois nomes que merecem um destaque a parte: Julianne Moore e Burt Reynolds, ambos indicados ao Oscar nas categorias de coadjuvantes na cerimônia de 1998 (derrotados por Kim Basinger e Robin Williams, respectivamente). Moore e Reynolds criam as figuras mais fascinantes do filme, duas pessoas que, sob a máscara de um suposto glamour (pois são, claramente, os mais bem-sucedidos profissionalmente naquele rol de personagens), escodem emoções reprimidas e sonhos frustrados que, quando vêm à tona, dão origem aos momentos mais comoventes do filme de P. T. Anderson. É difícil não se sensibilizar com a afeição materna que a personagem de Moore desenvolve em relação a Eddie Adams/Dirk Diggler e não sentir pena daquela mulher em suas tentativas frustradas de recuperar a guarda de seu filho. Assim como é difícil não se encantar com o Jack Horner de Reynolds e não sofrer com ele na maravilhosa cena da limousine, ao mesmo tempo catártica e trágica. Aliás, é no desempenho de Reynolds que Anderson deixou realmente claro seu imenso talento para a direção de atores: conhecido astro de filmes de ação dos anos 70, o ator, canastrão por excelência, surpreende imensamente ao dar vida a um sujeito simples, humano, mas de uma presença que impressiona. Não é tão difícil entender o fascínio que o sujeito gera em Eddie Adams, convencendo-o a entrar no cinema pornô.

Contando com referências a outros cinemas, sobretudo o de Martin Scorsese (como não pensar em Touro Indomável diante da cena final de Boogie Nights? Como não lembrar de Os Bons Companheiros a cada plano-sequência de tirar o fôlego construído por Anderson? Como não pensar em muitos filmes de Scorsese diante da saga de um homem que sai do nada para o auge e do auge para o fundo do poço?), Boogie Nights é um filme que se agiganta com o passar do tempo. E que, mesmo que não fosse essa a pretensão de Paul Thomas Anderson, não deve em nada aos filmes do mestre Scorsese aqui citados. 


Boogie Nights - Prazer sem Limites 
Boogie Nights, 1997
Paul Thomas Anderson