segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Lincoln



John Ford e Steven Spielberg são, a despeito de todas as diferenças que os separam, cineastas profundamente americanos. O primeiro talvez seja, aliás, o maior diretor de cinema já surgido nos Estados Unidos, enquanto o segundo é provavelmente o mais bem-sucedido profissional da área em todos os tempos. Ford fez filmes que definiram um olhar sobre a América, com suas paisagens grandiosas e John Wayne como protagonista; Spielberg foi figura constante na formação do imaginário de uma geração, com seu irresistível cinema escapista que produziu algumas obras-primas (Tubarão, E.T. e Os Caçadores da Arca Perdida, pelo menos).

Em 1939, Ford filmou o início da carreira de advogado daquele que viria a ser o 16º presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (interpretado por um jovem e inspirado Henry Fonda). Em 2012, Spielberg registrou os últimos meses de vida do mesmo personagem (vivido pelo estupendo Daniel Day-Lewis), focando em sua batalha para aprovar a emenda à Constituição que colocaria fim à escravidão em solo norte-americano. Em muitos sentidos, Lincoln pode ser visto como uma sequência de A Mocidade de Lincoln. O misto de sobriedade e encantamento pela figura de Lincoln está presente em ambos os filmes, para começar. Ford é teleológico em seu olhar para o jovem Lincoln, buscando ali os traços que se manifestariam mais tarde, levando o advogado humilde ao posto político mais importante do país e à luta contra a escravidão e pela dignidade humana. A história aqui é monumentalizada, mesmo ao abordar uma micro-realidade: vemos o pequeno, mas projetamos a grandiosidade do que está por vir. Spielberg, por sua vez, sabe estar diante de um mito e filma Lincoln como tal: uma figura quase etérea, de voz cândida e postura apaziguadora, um protagonista da História a quem todos dão ouvidos. Mas, ao mesmo tempo, o diretor e o roteirista Tony Kushner não têm medo de mostrar a intimidade do personagem, seus embates com uma esposa dramática e a relação distante com o filho mais velho; tampouco têm medo de mergulhar nos bastidores da política e retratar o presidente como líder de um esquema de corrupção para garantir a aprovação da tão almejada emenda constitucional. De alguma forma, o jovem idealista de A Mocidade de Lincoln amadureceu, conheceu a política e as regras que a movem, perdeu a inocência. Mas não a dignidade. Pois Abraham Lincoln, para Ford e Spielberg, é um Grande Homem.

Steven Spielberg vem se esforçando, desde meados da década de 1980, para ser visto como um cineasta sério. Os belos A Cor Púrpura e Império do Sol, dramas sobre temáticas tidas como importantes, foram as primeiras tentativas nesse sentido. O diretor chegou onde queria com A Lista de Schindler, de 1993, e continuou no caminho do cinema "adulto" em filmes como Amistad (1997), O Resgate do Soldado Ryan (1998) e Munique (2005). Mas, talvez com exceção desse último (que também marcou sua primeira parceria com Kushner), Spielberg nunca conseguiu se afastar totalmente do melodrama. Lincoln foi acusado por muitos de ser melodramático, o que, além de estar longe de constituir um demérito por si só, seria profundamente coerente com a carreira de seu diretor. No entanto, há um certo equívoco nessa acusação: o cineasta trabalha, aqui, numa inusitada lógica de sucessivos anti-clímax, mostrando o que, na busca por uma narrativa redonda, achamos que não deveria ser mostrado (a morte de Lincoln), não-mostrando o que esperávamos ver (o anúncio do resultado da votação, o atentado à vida do presidente), terminando o filme um pouco adiante do momento que parecia perfeito para fazê-lo. Não há, na narrativa de Lincoln, um momento construído exclusivamente para arrancar lágrimas do espectador, como o discurso de John Quincy Adams no tribunal em Amistad, a despedida de Oskar Schindler em A Lista de Schindler ou os reencontros dos protagonistas de A Cor Púrpura e Império do Sol com suas respectivas famílias. Talvez o mérito maior nesse ponto seja do texto de Kushner. Mas talvez esse conflito entre sobriedade e emoção, entre grandiosidade e olhar microscópico, revele um Steven Spielberg que amadureceu sem deixar de ser Steven Spielberg, um cineasta que, aos 66 anos de idade, aceitou o posto de herdeiro daquele que é considerado, ainda hoje, o maior diretor de cinema que a América já produziu: John Ford.


Lincoln 
Lincoln, 2012
Steven Spielberg

Ressaca de Oscar



Ressaca de Oscar é terrível. Depois de meses acompanhando rumores, prognósticos e outras premiações que funcionam (ou não) como prévias, o término da tão aguardada cerimônia deixa uma sensação de vazio que, provavelmente, passará quando Cannes chegar.

Mas vamos ao Oscar 2013: o ótimo Argo confirmou o favoritismo na categoria principal e, como Ben Affleck foi inexplicavelmente esquecido por sua direção (o que rendeu uma ótima piada de Seth McFarlane, logo no início da festa, sobre o caráter ultra-secreto da história contada pelo longa), sua subida ao palco para receber a estatueta de melhor filme ao lado de Grant Heslov e George Clooney teve ares de catarse, com o sujeito visivelmente emocionado; com isso, infelizmente, a Academia deixou de premiar aqueles que eram os dois melhores dentre os indicados, o belíssimo Lincoln e o fundamental A Hora Mais Escura, sendo que até o supostamente favorito Steven Spielberg saiu de mãos abanando; Quentin Tarantino é um gênio e, apesar de Django Livre não ser seu melhor trabalho, foi delicioso vê-lo no palco recebendo um Oscar quase 20 anos depois de sua vitória por Pulp Fiction; Jennifer Lawrence levou um exagerado prêmio de melhor atriz, o que fez a Academia perder a chance de criar um momento bem bonito, com Emmanuelle Riva subindo ao palco, no dia de seu 86º aniversário, para receber a estatueta das mãos de seu compatriota Jean Dujardin; por outro lado, a categoria melhor ator foi marcada por um encontro de gigantes, com Meryl Streep entregando a Daniel Day-Lewis seu terceiro (e merecido) Oscar. O ator, estupendo em Lincoln, representou, solitário, a beleza e elegância do filme de Spielberg. Já entre os coadjuvantes, ganharam Susan Boyle... quer dizer, Anne Hathaway, por sua boa performance naquele abacaxi chamado Os Miseráveis, e um surpreendente, mas nem tanto, Christoph Waltz, premiado novamente por um papel cômico/violento num filme de Tarantino. Minha torcida era por Tommy Lee Jones mas Waltz é a alma de Django Livre e sua vitória não deve ser lamentada.

É isso. Por fim, numa tentativa desesperada de aliviar essa ressaca, listo aqui dez filmes que poderão se tornar fortes concorrentes na corrida para o Oscar 2014.



The Counselor (Ridley Scott)
Diana (Oliver Hirschbiegel)
The Fifth Estate (Bill Condon)
Foxcatcher (Bennett Miller)
O Grande Gatsby (Baz Luhrmann)
Inside Llewyn Davis (Joel Coen e Ethan Coen)
Labor Day (Jason Reitman)
Nebraska (Alexander Payne)
Twelve Years a Slave (Steve McQueen)
The Wolf of Wall Street (Martin Scorsese)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Oscar 2013: apostas finais


Chegamos aos finalmentes, finalmente. Amanhã à noite ocorre a cerimônia do Oscar, fechando essa pouco usual temporada de prêmios. Tudo aponta para uma vitória de Argo na categoria principal, mas com uma distribuição bastante equitativa de prêmios para obras como Lincoln e Os Miseráveis. O belíssimo filme de Steven Spielberg, aliás, parece ser a única ameaça real ao favorito e, por isso, vale a pena ficar atento às categorias "secundárias" em que ambos estão indicados, como montagem, trilha sonora e roteiro adaptado. Elas podem dar indícios fortes de quem sairá com a estatueta mais cobiçada no fim da noite. 


Filme: 
Quem ganha: Argo
Minha torcida: Lincoln / A Hora Mais Escura

Diretor: 
Quem ganha: Steven Spielberg (Lincoln)
Minha torcida: Steven Spielberg (Lincoln)

Ator: 
Quem ganha: Daniel Day-Lewis (Lincoln)
Minha torcida: Daniel Day-Lewis (Lincoln)

Atriz: 
Quem ganha: Emmanuelle Riva (Amor)
Minha torcida: Jessica Chastain (A Hora Mais Escura)

Ator Coadjuvante: 
Quem ganha: Tommy Lee Jones (Lincoln)
Minha torcida: Tommy Lee Jones (Lincoln)

Atriz Coadjuvante: 
Quem ganha: Anne Hathaway (Os Miseráveis)
Minha torcida: Helen Hunt (As Sessões)

Roteiro Adaptado: 
Quem ganha: Argo
Minha torcida: Lincoln

Roteiro Original: 
Quem ganha: Django Livre
Minha torcida: A Hora Mais Escura

Montagem: 
Quem ganha: Argo
Minha torcida: A Hora Mais Escura

Fotografia: 
Quem ganha: 007 - Operação Skyfall
Minha torcida: 007 - Operação Skyfall

Direção de Arte: 
Quem ganha: Anna Karenina
Minha torcida: Lincoln

Figurino: 
Quem ganha: Os Miseráveis
Minha torcida: Lincoln

Maquiagem: 
Quem ganha: Os Miseráveis
Minha torcida: O Hobbit

Efeitos Especiais: 
Quem ganha: As Aventuras de Pi
Minha torcida: As Aventuras de Pi

Mixagem de Som: 
Quem ganha: Os Miseráveis
Minha torcida: 007 - Operação Skyfall

Edição de Som: 
Quem ganha: Argo
Minha torcida: A Hora Mais Escura

Trilha Sonora: 
Quem ganha: As Aventuras de Pi
Minha torcida: As Aventuras de Pi

Canção: 
Quem ganha: "Skyfall" (007 - Operação Skyfall)
Minha torcida: "Skyfall" (007 - Operação Skyfall)

Filme Estrangeiro: 
Quem ganha: Amor
Minha torcida: No

Animação: 
Quem ganha: Detona Ralph

Documentário: 
Quem ganha: How to Survive a Plague

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Sobre o Oscar 2013



Temporada de premiações estranha essa. Já em meados do ano passado, quando pouca coisa "oscarizável" havia sido exibida, Argo, de Ben Affleck, já despontava como um possível candidato forte ao maior prêmio do cinema americano. O filme estreou, colheu elogios por onde passou, mas, quando os prêmios da crítica começarem a ser anunciados, em dezembro, dois outros contendores surgiram de maneira avassaladora na disputa: Lincoln, de Steven Spielberg, e A Hora Mais Escura, de Kathryn Bigelow. Parecia que as categorias principais do Oscar 2013 ficariam entre eles.
Parecia. Porque aí teve início uma polêmica estúpida em torno do longa de Bigelow, acusado, por alguns imbecis que não entenderam nada do filme, de valorizar a tortura de prisioneiros como método investigativo, e seu favoritismo sumiu. E, quando foram anunciados os indicados ao Oscar, em meados de janeiro, a diretora de Guerra ao Terror acabou esquecida, atingida por esses ataques injustos. No entanto, a maior surpresa foi a ausência de Ben Affleck entre os melhores diretores. E como Lincoln obteve 12 indicações, sobrepujando todos os outros concorrentes, parecia que esse seria o ano de Steven Spielberg, mais uma vez.
Parecia. Porque bastou começarem os prêmios dos sindicatos, tidos como as verdadeiras prévias para o Oscar, para Argo voltar ao topo do favoritismo. O filme de Affleck simplesmente fez a limpa: venceu melhor elenco no SAG, melhor diretor no DGA, melhor roteiro adaptado no WGA, melhor produção no PGA - sem contar as vitórias no Globo de Ouro e no BAFTA. Com esse histórico, é muito provável que Argo seja eleito a melhor produção de 2012, mesmo com a ausência de seu diretor em sua respectiva categoria (o que não acontece desde o Oscar 1990, quando Conduzindo Miss Daisy levou melhor filme sem Bruce Beresford ser indicato entre os diretores).
Mas o que acho disso tudo? Gosto de Argo. Gosto bastante, até. Mas Lincoln e A Hora Mais Escura são, de fato, os melhores filmes dessa disputa. O primeiro é um delírio fordiano de Spielberg brilhantemente realizado, uma obra clássica que consegue a proeza de se construir num constante anti-clímax, ao mesmo tempo que apresenta um protagonista mítico, etéreo, e ainda assim estranhamente humano (interpretado por um magnífico Daniel Day-Lewis). Já o segundo é uma desconfortável mirada no espelho da sociedade americana contemporânea, um filme sobre a obsessão que definiu aquele país (e toda uma geração) na última década.
Torcerei por Lincoln no próximo domingo, já que as chances de A Hora Mais Escura são diminutas. Mas às vezes me lembro que, há dois anos, um sujeito chamado Tom Hooper lançou um drama de época quadrado, bonitinho e bobinho chamado O Discurso do Rei e acabou vencendo as categorias principais do Oscar; e me lembro que há um outro filme de Hooper na disputa esse ano, o insuporável Os Miseráveis; e daí me alivio de saber que, ao menos, o favorito é o ótimo Argo, e não esse musical empolado desse diretor picareta. Portanto, se Ben Affleck subir ao palco do Dolby Theater no domingo, ao lado de George Clooney e Grant Heslov, para receber a estatueta de melhor filme, não reclamarei.


Os indicados ao Oscar de melhor filme: 

Amor 
Argo 
As Aventuras de Pi 
Django Livre 
O Lado Bom da Vida 
Os Miseráveis 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A Hora Mais Escura



Cresci, junto a toda uma geração, sob a sombra dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Uma vida foi construída entre os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono e a captura de Osama Bin Laden, quase dez anos mais tarde, mas as imagens daquela fatídica manhã do início do século jamais me abandonaram. 

A Hora Mais Escura, nova porrada em forma de filme da diretora Kathryn Bigelow, é sobre esse mundo que conviveu, durante uma década, com a presença meio fantasmagórica de Bin Laden e com a lembrança imagética de suas ações, esse mundo que mudou, de alguma forma, em 11 de setembro de 2001. Trata-se, portanto de uma obra representativa de uma época, de uma geração. Maya, a protagonista, interpretada com intensidade admirável por Jessica Chastain, é também uma vítima e um produto desse mundo. Recrutada pela CIA logo após ter terminado o Ensino Médio, a jovem agente abriu mão de qualquer vida social, privacidade e liberdade para se dedicar a uma primeira (e ingrata) missão: encontrar Bin Laden. Os riscos constantes, o stress e a pressão que envolvem essa busca consomem a personagem ao longo do filme de Bigelow - ao final, sentimos, enquanto espectadores, a exaustão de Maya e nos comovemos com sua catarse silenciosa. 

Se grande parte da força de A Hora Mais Escura está no que sua história representa para o nosso tempo, cabe às mãos talentosas da diretora tirar daí um grande filme, o que ela consegue sem maiores problemas. Com o olhar depurado de quem já fez uma obra memorável sobre o cotidiano da chamada "guerra contra o terror", Bigelow não tem medo de encarar o lado feio de um conflito como esse, apresentando, sem verbalizar qualquer julgamento, a tortura como instrumento utilizado para a caça aos membros da Al Qaeda. Não, tal prática não é glorificada pelo filme como apontaram os mais afoitos - para a diretora, não há nada de bonito em torturar um ser humano -, mas A Hora Mais Escura rompe com a hipocrisia do politicamente correto ao mostrar que sim, as informações extraídas de prisioneiros sob tortura foram fundamentais na descoberta do paradeiro do terrorista mais procurado do mundo.

A sequência da invasão da fortaleza de Bin Laden, filmada por Bigelow num crescendo de tensão que beira o insuportável e com riqueza de detalhes impressionante, é a cereja nesse bolo amargo. 


A Hora Mais Escura 
Zero Dark Thirty, 2012
Kathryn Bigelow