John Ford e Steven Spielberg são, a despeito de todas as diferenças que os separam, cineastas profundamente americanos. O primeiro talvez seja, aliás, o maior diretor de cinema já surgido nos Estados Unidos, enquanto o segundo é provavelmente o mais bem-sucedido profissional da área em todos os tempos. Ford fez filmes que definiram um olhar sobre a América, com suas paisagens grandiosas e John Wayne como protagonista; Spielberg foi figura constante na formação do imaginário de uma geração, com seu irresistível cinema escapista que produziu algumas obras-primas (Tubarão, E.T. e Os Caçadores da Arca Perdida, pelo menos).
Em 1939, Ford filmou o início da carreira de advogado daquele que viria a ser o 16º presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (interpretado por um jovem e inspirado Henry Fonda). Em 2012, Spielberg registrou os últimos meses de vida do mesmo personagem (vivido pelo estupendo Daniel Day-Lewis), focando em sua batalha para aprovar a emenda à Constituição que colocaria fim à escravidão em solo norte-americano. Em muitos sentidos, Lincoln pode ser visto como uma sequência de A Mocidade de Lincoln. O misto de sobriedade e encantamento pela figura de Lincoln está presente em ambos os filmes, para começar. Ford é teleológico em seu olhar para o jovem Lincoln, buscando ali os traços que se manifestariam mais tarde, levando o advogado humilde ao posto político mais importante do país e à luta contra a escravidão e pela dignidade humana. A história aqui é monumentalizada, mesmo ao abordar uma micro-realidade: vemos o pequeno, mas projetamos a grandiosidade do que está por vir. Spielberg, por sua vez, sabe estar diante de um mito e filma Lincoln como tal: uma figura quase etérea, de voz cândida e postura apaziguadora, um protagonista da História a quem todos dão ouvidos. Mas, ao mesmo tempo, o diretor e o roteirista Tony Kushner não têm medo de mostrar a intimidade do personagem, seus embates com uma esposa dramática e a relação distante com o filho mais velho; tampouco têm medo de mergulhar nos bastidores da política e retratar o presidente como líder de um esquema de corrupção para garantir a aprovação da tão almejada emenda constitucional. De alguma forma, o jovem idealista de A Mocidade de Lincoln amadureceu, conheceu a política e as regras que a movem, perdeu a inocência. Mas não a dignidade. Pois Abraham Lincoln, para Ford e Spielberg, é um Grande Homem.
Steven Spielberg vem se esforçando, desde meados da década de 1980, para ser visto como um cineasta sério. Os belos A Cor Púrpura e Império do Sol, dramas sobre temáticas tidas como importantes, foram as primeiras tentativas nesse sentido. O diretor chegou onde queria com A Lista de Schindler, de 1993, e continuou no caminho do cinema "adulto" em filmes como Amistad (1997), O Resgate do Soldado Ryan (1998) e Munique (2005). Mas, talvez com exceção desse último (que também marcou sua primeira parceria com Kushner), Spielberg nunca conseguiu se afastar totalmente do melodrama. Lincoln foi acusado por muitos de ser melodramático, o que, além de estar longe de constituir um demérito por si só, seria profundamente coerente com a carreira de seu diretor. No entanto, há um certo equívoco nessa acusação: o cineasta trabalha, aqui, numa inusitada lógica de sucessivos anti-clímax, mostrando o que, na busca por uma narrativa redonda, achamos que não deveria ser mostrado (a morte de Lincoln), não-mostrando o que esperávamos ver (o anúncio do resultado da votação, o atentado à vida do presidente), terminando o filme um pouco adiante do momento que parecia perfeito para fazê-lo. Não há, na narrativa de Lincoln, um momento construído exclusivamente para arrancar lágrimas do espectador, como o discurso de John Quincy Adams no tribunal em Amistad, a despedida de Oskar Schindler em A Lista de Schindler ou os reencontros dos protagonistas de A Cor Púrpura e Império do Sol com suas respectivas famílias. Talvez o mérito maior nesse ponto seja do texto de Kushner. Mas talvez esse conflito entre sobriedade e emoção, entre grandiosidade e olhar microscópico, revele um Steven Spielberg que amadureceu sem deixar de ser Steven Spielberg, um cineasta que, aos 66 anos de idade, aceitou o posto de herdeiro daquele que é considerado, ainda hoje, o maior diretor de cinema que a América já produziu: John Ford.
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