
Quando A Rede Social chegou aos cinemas, no final do ano passado, pipocaram pela internet algumas tímidas comparações entre o filme de David Fincher e o clássico maior do cinema norte-americano, Cidadão Kane. Confesso que, na época, até por ter curiosamente revisto Kane na mesma semana em que assisti A Rede Social, fiquei um pouco fascinado por esse tipo de aproximação entre os filmes. Comprei a ideia mesmo e cheguei a pensar em escrever sobre o assunto no blog (algo que acabou não acontecendo). Penso que entender o porquê dessa comparação é fundamental para a compreensão da força que muitos não conseguiram enxergar em A Rede Social.
Cidadão Kane narra a trajetória de Charles Foster Kane, grande magnata das comunicações, homem de vida privada cheia de mistérios, que, ao morrer, deixa no ar um mistério: o significado de sua última palavra, "Rosebud". O filme de Orson Welles é construído em torno da investigação de um jornalista acerca do homem Charles Foster Kane, para além do mito (e o significado de "Rosebud" pode ser a chave para a compreensão do personagem). A Rede Social, por sua vez, apresenta a criação do Facebook, badalado e ultra-utilizado site de relacionamentos, a partir do relacionamento entre seus dois "pais", Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) e o brasileiro Eduardo Saverin (Andrew Garfield). O filme do diretor David Fincher também é narrado em flashback, a partir do julgamento das duas ações judiciais movidas contra Zuckerberg (uma delas por Saverin).
O que pode passar despercebido em A Rede Social é que o filme é muito mais sobre o seu protagonista do que sobre o Facebook ou o "espírito empreendedor americano". Zuckerberg, tal qual Kane, é uma figura ambígua, que causa no espectador um misto de repulsa e fascínio - e Jesse Eisenberg constrói essa dubiedade de forma magistral. Tal qual Kane, o sujeito se transforma em uma espécie de midas das comunicações, um jovem celebrado e cercado de puxa-sacos, mas que permanece como figura a ser decifrada. E, tal qual Kane, Zuckerberg também possui seu "Rosebud", elemento-chave para a compreensão de suas motivações (e que se materializa na brilhante cena final do filme).
Na noite de ontem, A Rede Social foi derrotado no Oscar pelo britânico O Discurso do Rei, como muitos já esperavam. O filme certinho, bonitinho, redondinho, sobre o rei gago George VI cativou os corações e mentes dos votantes, talvez ressabiados em premiar uma obra sobre um bando de adolescentes nerds dominando o mundo. Pois mesmo com sua estrutura clássica, sem grandes rompantes de criatividade, A Rede Social exala juventude e frescor, frente ao conservadorismo simpático do filme de Tom Hooper. E a Academia, depois de premiar uma série de filmes contemporâneos que discutem questões contemporâneas, inesperadamente decidiu que era o momento de dar um passo atrás, para laurear o tipo de obra que, durante muito tempo, foi taxada como "com cara de Oscar". Uma pena, mesmo que O Discurso do Rei seja inegavelmente um bom filme. Perdeu-se a oportunidade de celebrar um exemplar cinematográfico que fala do e para o nosso tempo, sem ser, para isso, um trabalho datado. Nisso, também, A Rede Social se aproxima de Cidadão Kane: ambos saíram derrotados do Oscar, diretamente para a história do cinema.