quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Vício Frenético



Existem alguns poucos pontos em comum entre Vício Frenético, obra-prima que Abel Ferrara lançou em 1992, e essa suposta refilmagem, comandada pelo grande Werner Herzog. Ambos têm como protagonista o bad lieutenant de seus títulos, um policial inescrupuloso, violento, adepto de métodos escusos e viciado em todos os tipos de drogas imagináveis. Mas o Vício Frenético de Herzog caminha numa direção bastante diferente daquela escolhida pelo longa de 92: o tom aqui é bem menos pesado, e a degradação moral do personagem parece estar ainda num estágio menos adiantado do que no filme de Ferrara - ainda que o bad lieutenant de 2009 seja quase tão trágico quanto o anterior, essa nova versão é muito mais uma comédia de humor negro, sarcástica e politicamente incorreta, do que um drama pesado sobre culpa e redenção; saem também as referências religiosas, tão costumeiras no cinema do cineasta novaiorquino; por outro lado, Herzog insere sua história na New Orleans pós-Katrina e trafega com desenvoltura nos submundos de uma cidade se reerguendo.

Há, no entanto, uma outra semelhança entre os dois filmes que não passa despercebida. Como afirmei em meu texto sobre o Vício Frenético de Ferrara, nunca fui muito fã de Harvey Keitel, mas, ao assistir seu trabalho naquele filme, tive de render-me ao seu talento: o policial sem nome interpretado por Keitel não só representa o melhor desempenho de sua carreira, como talvez seja uma das interpretações mais viscerais que já vi. Com Nicolas Cage, protagonista do novo Vício Frenético, a história é um pouco diferente: sempre achei-o um bom ator e adoro seus desempenhos em filmes como Despedida em Las Vegas e Adaptação. Mas confesso que minha descrença em seu talento, ou ao menos em sua capacidade para escolher bons projetos, vinha crescendo nos últimos tempos. A década 2000 foi um período de, basicamente, filmes ruins para Cage. À exceção do já citado Adaptação e do ótimo O Senhor das Armas, o sobrinho de Francis Ford Coppola conseguiu nos últimos anos a proeza de, a cada nova obra lançada, superar imediatamente a anterior em ruindade. O Capitão Corelli, Códigos de Guerra, Motoqueiro Fantasma, O Sacrifício, O Vidente... a lista não é pequena. Diante de sua atuação em Vício Frenético, sinceramente, todos esses equívocos parecem irrelevantes. O que se tem aqui é a melhor interpretação da carreira de um grande ator e chega a ser difícil acreditar no que se vê na tela. Completamente alucinado, Cage incorpora o policial Terrence com uma paixão, digamos, alucinante. Seus trejeitos, que em muitos filmes pareceram exageros dramáticos, aqui caem como uma luva no personagem. E, graças ao ator, o filme de Herzog acaba sendo uma incrível sucessão de cenas memoráveis (a abordagem ao casal de namorados, a tortura das velhinhas no asilo, os delírios com iguanas, as cenas com Eva Mendes... até culminar na desde já clássica "His soul is still dancing"). Acho que poucas vezes no cinema recente a palavra genial serviu tão bem para definir um filme e o desempenho de seu ator principal. E que venham mais bombas com Nicolas Cage! Ele já está previamente perdoado por elas também.


Vício Frenético 
Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans, 2009
Werner Herzog

5 comentários:

Unknown disse...

“Vício frenético”

O original, de 1992, é um dos pesadelos tresloucados que fizeram os momentos altos da trajetória do junkie Abel Ferrara, com Harvey Keitel corajosamente exposto no papel do policial viciado que afunda durante uma investigação.
A refilmagem de Werner Herzog é típica encomenda de estúdio, na qual o diretor recebeu funções apenas burocráticas, aclimatando-se nos EUA, onde passou a residir há pouco. Mas o alemão adicionou humor ao clima sombrio e desesperado de Ferrara, além de transportar a ação para a Nova Orleans pós-Katrina. Nicolas Cage imprime cinismo e simpatia a seu personagem, reforçando uma crítica às instituições policiais que a tragédia pessoal diluía.
Não se trata, portanto, dessas nefastas refilmagens hollywoodianas, originadas no esgotamento criativo e na falta de escrúpulos. É outro filme, embora partindo das mesmas premissas. E Herzog, um dos maiores cineastas vivos, como já disse aqui, mesmo quando se dedica a garantir o leitinho das crianças, está quilômetros acima do padrão mediano dessa indústria movida a reciclagens.

Wallace Andrioli Guedes disse...

Pois é, Guilherme, concordo com o que você disse. E o interessante é que, ao que parece, o Herzog nega o fato de seu filme ser um remake, e inclusive existiu uma troca de acusações públicas entre ele e o Ferrara. Fico pensando: se o filme não se chamasse BAD LIEUTENANT, iam considerá-lo remake? Ou será que, no máximo, lembrariam de algumas semelhanças com o longa de 1992?
De qualquer forma, são duas obras-primas, a meu ver (acho o filme do Ferrara um pouquinho superior).

Anônimo disse...

Sério? Wow. Vou tratar de ver o filme original logo e, em seguida, vou procurar este aí.

Anônimo disse...

Muita gente falando bem desse filme. Quero ver se vejo ele esta semana. Gostei do blog!!

http://cinemaemdvd.blogspot.com/

Wallace Andrioli Guedes disse...

Wally, o ideal é mesmo ver os dois filmes, pois ambos são geniais.
Mas, caso tenha a chance de ver o do Herzog no cinema, não deixe pra depois... assistir a um ou a outro primeiro não faz grande diferença.