sábado, 8 de fevereiro de 2014

Trapaça



É no mínimo curioso que, num ano em que Martin Scorsese lançou o potente O Lobo de Wall Street, David O. Russell assuma o protagonismo na temporada de premiações com Trapaça, filme que tenta emular exatamente o melhor do cinema de Scorsese. Estão lá a narração em off com múltiplos pontos de vista, os planos-sequência e a câmera que se move rapidamente em direção a seus personagens em momentos-chave, a trilha sonora setentista marcante, os protagonistas underdogs e até Robert De Niro interpretando um mafioso. Mas Trapaça não tem o vigor dos filmes do diretor ítalo-americano nos quais parece se inspirar. Falta, por exemplo, à voz off, a ironia scorseseana e uma presença mais constante ao longo da narrativa, já que ela parece sumir no "miolo" de Trapaça, para retornar ao final com o intuito de explicar o que se passou de maneira didática para o espectador; falta a O. Russell uma preocupação menor com as reviravoltas da trama, elemento secundário no cinema de Scorsese, onde o que realmente importa é o desenvolvimento das múltiplas facetas de personagens que geram na plateia um fascinante misto de repulsa e atração (é difícil não pensar no quão memorável uma figura como Irving Rosenfeld poderia ser num filme de Scorsese); e falta, sobretudo, o ritmo alucinante que marca obras como Os Bons Companheiros (talvez a principal inspiração de Trapaça), e mesmo o cocainado O Lobo de Wall Street.   

Mas, deixando Martin Scorsese e os prêmios um pouco de lado, é possível reconhecer Trapaça como um ótimo filme. David O. Russell arranca grandes atuações de quase todo seu elenco (Jennifer Lawrence, possivelmente vítima de um erro de casting, acaba sendo o único porém entre os atores do filme, com uma composição excessiva que conduz sua personagem à desnecessária cena em que canta "Live and Let Die"), enquanto conta com competência uma história complicada e cheia de camadas e que tem como centro emocional, na verdade, o amor entre os vigaristas vividos por Christian Bale e Amy Adams. É estranho mas, no fim das contas, Trapaça é isso: uma bela história de amor entre dois personagens meio tortos, mas irresistíveis. E aí nem era necessário remeter aos filmes de Scorsese, já que o próprio O. Russell trilhou caminhas parecidos, com sucesso, em seus dois longas anteriores – o excelente O Vencedor e o delicioso O Lado Bom da Vida.


Trapaça 
American Hustle, 2013
David O. Russell

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