terça-feira, 14 de dezembro de 2010


[cidadão boilesen]

Cidadão Boilesen
Cidadão Boilesen, 2009
Chaim Litewski


Geralmente, o cinema que se produz sobre os anos nos quais o Brasil viveu sob o governo dos militares (1964-1985) é um cinema altamente militante, de esquerda, que se preocupa muito pouco em problematizar determinados lugares-comuns e em trazer à tona outras vozes, outros olhares. Apesar de me identificar politicamente com essa militância, me pergunto às vezes se, enquanto cinema e olhar sobre uma época, esse tipo de postura não pode se tornar empobrecedora. O documentário Cidadão Boilesen é exemplar no sentido de mostrar o quanto ouvir o inimigo pode servir para fortalecer muito mais aquele que ouve do que aquele que fala.
Ao contar a trajetória polêmica de Henning Boilesen - dinamarquês naturalizado brasileiro, presidente da Ultragaz na década de 1960, que financiou a repressão aos movimentos de esquerda contrários aos governos militares e chegou mesmo a participar de sessões de tortura -, o cineasta Chaim Litewski opta por ouvir também não só os familiares do sujeito (que, naturalmente, buscam recuperar sua imagem, negando as acusações que pesam sobre ele), como também algumas figuras grotescas do período (uma série de militares reformados que esbanjam cinismo, um ex-agente da sinistra Operação Bandeirante e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra, ex-comandante do Doi-Codi e um dos principais alvos dos que hoje lutam por punição para os torturadores do regime militar brasileiro). Vê-los falar é uma experiência que provoca incômodo e revolta, ainda que o filme não busque julgá-los explicitamente. E, por isso, é curioso perceber como as escolhas de Litewski em seu filme acabam por fortalecer ainda mais um olhar de horror para a figura de Boilesen e para todos aqueles que aparecem na tela tentando defendê-lo. O impacto dos atos do dinamarquês, a barbárie que sua figura passou a representar, permanecem gigantescos.
Depois de ouvir seu filho buscando redimi-lo, os diversos militares esforçando-se por inocentá-lo, depois de ver cenas da família Boilesen aos prantos no velório do industrial, ainda assim, o que fica na memória, são os relatos sobre a "pianola Boilesen", instrumento de tortura trazido para o Brasil pelo sujeito. Daí entendemos o sentimento de euforia entre as esquerdas brasileiras quando da sua execução. Como diz um entrevistado em determinado momento do filme, pode soar estranho, hoje, que alguém deseje assim, com tanta força, publicamente, a morte de outra pessoa. Mas basta assistir Cidadão Boilesen para, no mínimo, entender este sentimento.

Um comentário:

Rafael Carvalho disse...

Concordo plenamente contigo, Wallace. O filme, ao se voltar para um outro lado da história, enrique a discussão acerca das barbaridades que eram cometidas durante o regime ditatorial de forma bilateral. Mas o mais interessante é que, mesmo assim, ele não julga esse outro lado, como seria mais fácil e bom para o ego das pessoas, muito por causa dos comentários de pessoas próximas ao Boilesen que tentam redimi-lo. Ainda assim, não é suficiente para que possamos perdoá-lo, nem poderíamos pelo que fez. Documentário riquíssimo esse, que ainda traz uma abordagem diferenciada sobre um período histórico tão mal representado no nosso cinema.movies