terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Clã



Em sociedades que viveram sob ditaduras brutais, como as de alguns países latino-americanos entre as décadas de 60 e 80 e europeus nos anos 20 e 30, por vezes surgem questionamentos sobre o quanto as pessoas realmente sabiam das violências e arbitrariedades cometidas naqueles anos e sobre os muitos comportamentos decorrentes desse conhecimento (ou da falta dele): a alienação, a indiferença, a ambiguidade, a colaboração, a resistência etc. O Clã, novo filme do sempre interessante Pablo Trapero, faz esse tipo de indagação ao contar a inusitada e apavorante história dos Puccio, família de classe média na Argentina do início dos anos 80 que sequestrava e matava poderosos empresários, enquanto embolsava vultosas quantias de dinheiro com os resgates cobrados. No contexto em que se passa a história do filme, de esfacelamento da ditadura militar daquele país, os horrores da casa dos Puccio e o incerto desconhecimento de alguns membros da família sobre o que acontecia no local servem de metáfora para o comportamento indefinido da maior parte da sociedade argentina durante os anos de autoritarismo. Trapero acerta em não explicitar essa discussão na narrativa de O Clã, em deixá-la subentendida, evitando uma postura mais militante que descambaria para acusações contra os que nada fizeram para impedir o horror: como nos contextos ditatoriais citados, são muitos os fatores que compõem o comportamento, tão humano, do não envolvimento com o que não lhe diz respeito diretamente, que vão do bem-estar econômico que pode gerar conforto e acomodação ao medo de retaliações. 

A seriedade e o potencial de polêmica que discussões desse tipo carregam parecem mais que adequados ao cinema árduo e pesado de Trapero, diretor acostumado a filmar histórias de figuras marginais em mundos cruéis e violentos (seus últimos três trabalhos exemplificam bem essa predileção: Leonera, Abutres e Elefante Branco, todos filmes duros sobre pessoas endurecidas pela vida). No entanto, apesar de ser de fato sério, violento e político, O Clã representa um bem-vindo respiro na carreira recente de Trapero, que sai do registro puramente realista e adentra num cinema mais claramente de gênero, com ritmo ágil, deliciosa trilha sonora de rocks setentistas e até mesmo uma referência direta a Os Bons Companheiros, obra-prima de Martin Scorsese que se tornou ícone do tipo de “filme de crime” com o qual O Clã busca dialogar (sem contar que o patriarca da família Puccio, interpretado por Guillermo Francella, por vezes parece saído daquelas famílias de psicopatas de slashers americanos como O Massacre da Serra Elétrica e Quadrilha de Sádicos). Mesmo no uso de seus conhecidos planos-sequência, Trapero parece mais solto, se divertindo sem a pretensão de fazer de sua câmera em movimento um guia para o espectador por mundos miseráveis.

Talvez caiba especular se essa mudança não resulta da presença, na produção do filme, da El Deseo, empresa dos irmãos Almodóvar que já produzira, no ano passado, Relatos Selvagens, outro grande sucesso do cinema argentino. A deliciosa coletânea de contos de Damián Szifrón, aliás, está muito mais próxima de O Clã que os trabalhos imediatamente anteriores de Trapero: é difícil não lembrar das melhores histórias de Szifrón diante do violento epílogo da saga dos Puccio, por exemplo, que o diretor filma com uma ironia selvagem.  

O Clã 
El Clan, 2015
Pablo Trapero

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A Travessia



O oscarizado documentário O Equilibrista (2008), de James Marsh (mesmo sujeito que realizaria, alguns anos depois, o insuportável A Teoria de Tudo), já contara as façanhas do francês Philippe Petit, que Robert Zemeckis revisita agora em A Travessia. No entanto, se aquele ótimo filme parecia limitado por certas convenções de uma maneira meio televisiva de se tratar o gênero documentário (depoimentos, imagens de arquivo e reconstituições ilustrativas), A Travessia alça voo na liberdade que a narrativa ficcional lhe dá e na inventividade visual de seu diretor. Há no filme um toque de magia essencial a uma história protagonizada por Petit.

O tom farsesco, circense, do equilibrista francês, quase um ilusionista, casa perfeitamente com o cinema de Zemeckis (e com a atuação exagerada de Joseph Gordon-Levitt), também um mágico a seu próprio modo, diretor quase sempre preocupado em proporcionar ao espectador experiências visuais (construídas a partir de trucagens permitidas pela linguagem cinematográfica) acachapantes. Foi assim em De Volta para o Futuro, Uma Cilada para Roger Rabbit, A Morte lhe Cai Bem, Forrest Gump e mesmo em suas não tão bem-sucedidas experiências com a animação. Em A Travessia, Zemeckis faz uso de quantidades imensas de efeitos visuais e de um esplêndido 3D para nos colocar onde O Equilibrista não conseguia: ao lado de Petit realizando sua mágica de atravessar, por sobre um cabo, o espaço que separava as duas torres do World Trade Center. Por mais que as fotografias, imagens de arquivo e palavras do próprio Petit, no filme de Marsh, evocassem seu feito, estar no cabo com ele, vendo o que ele provavelmente viu lá de cima, é algo que só um cinema espetacular – e de ficção – como o de Zemeckis consegue proporcionar. Não à toa, é em seu longo epílogo que o filme, até ali apenas uma experiência ágil, agradável e divertida, se aproxima do sublime. 

A Travessia também é, mais até que O Equilibrista, uma bela homenagem ao símbolo de Nova York derrubado por terroristas em setembro de 2001. Aqui, outra vez, o filme de Zemeckis se sai melhor que o de Marsh: enquanto o documentário tinha a sua disposição apenas imagens de arquivo do World Trade Center, a ficção recria os prédios de maneira a torná-los uma imagem do presente, permanente, viva na tela. Quando essa vida começa a se desvanecer, no último plano do filme (após Petit sair de cena com um olhar de profunda dor), A Travessia deixa no espectador um nó na garganta difícil de ser desfeito.


A Travessia 
The Walk, 2015
Robert Zemeckis

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

O Outro Lado


Frequentemente classificado como documentário, O Outro Lado é um caso excelente de filme que borra as fronteiras entre realidade e ficção do que é mostrado na tela de cinema. O diretor Roberto Minervini se propõe a acompanhar o cotidiano de uma comunidade pobre na Louisiana, Estados Unidos, mas seu método parece trafegar entre a observação e a encenação. Onde termina uma e começa a outra, não sabemos. A impressão é de que, na maior parte do tempo, como no bósnio Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro Velho (2013), de Danis Tanovic, os personagens estão encenando para a câmera cenas de seu próprio cotidiano, algumas delas bastante íntimas. O que não torna tais momentos menos “reais” – será que o ato de encenar enfraqueceria a veracidade do registro? Penso que os avanços já ocorridos nas discussões sobre o que define o documentário (como não lembrar do cinema de Eduardo Coutinho?) deixam claro que não.

Pode-se questionar, a partir daí, se O Outro Lado extrapola certos limites da ética em seu procedimento. Seria correto pedir a figuras degradadas que encenem (logo, vivam) sua própria degradação para a câmera? A resposta para isso não é fácil, mas, de qualquer maneira, está aí a fonte de grande parte do incômodo gerado pelo filme de Minervini. Ou seja, o diretor italiano alcança os efeitos pretendidos, mas por métodos talvez questionáveis.

Não me parece questionável, no entanto, o que Minervini faz na última parte do filme, ao registrar (aqui ele parece de fato estar apenas acompanhando um grupo de homens em seus afazeres e não pedindo que eles encenem para a câmera; mas, novamente, há muita diferença?) a presença de um grupo paramilitar naquela mesma região da Louisiana. O comportamento paranoico e odioso dos sujeitos, que vomitam preconceito e agressividade sobretudo contra Barack Obama, é tão non-sense que poderia gerar algumas risadas do lado de cá, tão acostumados que estamos em pintar os americanos de cima como meio loucos. O problema é que convivemos com fenômeno semelhante no Brasil de hoje. Diante da imagem de uma mulher com uma máscara de Obama simulando sexo oral num homem, ou desses paramilitares explodindo um carro que representaria o presidente norte-americano, é difícil não lembrar de casos recentes parecidos com esses ocorridos no Brasil (como o do adesivo com Dilma Rousseff de pernas abertas, colado no local em que é depositada a gasolina nos carros, os bonecos de Dilma e Lula enforcados, o lançamento de panfletos com os dizeres “Petista bom é petista morto” no velório de um ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e outras coisas mais).

Minervini, num exercício bastante corajoso de reconhecimento do outro, foi da Itália ao interior dos Estados Unidos para investigar o lado feio e degradado (O Outro Lado remete a Indomável Sonhadora, de Ben Zeitlin, tanto na forte carga distópica que ambos carregam, por vezes não parecendo estarem falando de uma realidade presente, mas sim de um futuro desolador, quanto na capacidade de encontrar manifestações intensas de carinho em ambientes profundamente hostis) da maior potência mundial. Mas acabou realizando um filme que faz muito sentido para um público que, provavelmente, ele não mirava: o brasileiro de 2015.

O Outro Lado 

The Other Side, 2015
Roberto Minervini

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A Pele de Vênus


É conhecido o gosto de Roman Polanski por narrativas que se passam em espaços fechados e/ou com poucos personagens. De seu primeiro filme, A Faca na Água (1962), com três atores num barco durante quase todo o tempo, passando pela magnífica “trilogia do apartamento” – Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e O Inquilino (1976) –, até trabalhos mais recentes, Polanski frequentemente retorna a esse esquema que domina tão bem.

Em A Pele de Vênus, o diretor franco-polonês está próximo de seu filme imediatamente anterior, Deus da Carnificina (2011), na utilização buñueliana de um ambiente fechado, que não permite que seus personagens saiam para as ruas (só a câmera de Polanski o faz, no início e no final de cada um dos filmes), e na inspiração em peças teatrais contemporâneas (sendo que, em A Pele de Vênus, o teatro é também tema, com toda sua trama se desenrolando sobre um palco). No entanto, aqui também está presente outro elemento caro a Polanski: a condição feminina nas relações de poder estabelecidas com os homens. O comportamento assumido pela personagem de Emanuelle Seigner ao longo de A Pele de Vênus, invertendo a dominação exercida inicialmente pelo diretor Thomas (Mathieu Amalric) e subjugando-o completamente à sua vontade, funciona como uma emblemática vingança contra os homens em geral, historicamente empoderados em seu trato com o sexo feminino. No diálogo com a obra de Polanski, é como se Vanda (Seigner) vingasse Rosemary, manipulada em seu impulso maternal pelo marido, que vendeu seu corpo ao demônio; vingasse a Carol de Repulsa ao Sexo, com seu medo constante (tão feminino) de ser violada; e a Krystyna de A Faca na Água, frequentemente menosprezada por seu parceiro. Daí a importância do diálogo de Polanski com a tragédia grega As Bacantes, de Eurípedes, citada rapidamente no meio de A Pele de Vênus e retomada de forma impactante no epílogo.
  
É verdade que tanto Carol quanto Krystyna já haviam reagido de alguma forma contra seus opressores (por meio do assassinato no primeiro caso e da traição no segundo), mas a força simbólica dos atos de Vanda é ainda maior. Ao manipular, subjugar, humilhar e, ao final, sacrificar (ainda que não literalmente) seu inimigo masculino, a personagem se aproxima da protagonista de A Morte e a Donzela (1994), que, aliás, é provavelmente o filme de Polanski mais parecido com A Pele de Vênus, ainda que nele os atos da protagonista sejam motivados mais por questões pessoais do que pelo “justiçamento de gênero” promovido por Vanda.

É verdade também que Roman Polanski tem em sua biografia um célebre caso de estupro de uma menor, que talvez permita a leitura de A Pele de Vênus como um filme misógino: Vanda e as mulheres seriam vilãs cruéis a humilhar e destruir homens até decentes como o Thomas vivido por Amalric – interpretação que poderia se estender para a loucura assassina de Carol em Repulsa ao Sexo, para a vingança irracional da protagonista de A Morte e a Donzela, para o adultério e a manipulação da Krystyna de A Faca na Água. Mas não penso ser esse o caso, uma vez que nesses filmes de Polanski as ações de suas personagens femininas, da mais prosaica traição a brutais assassinatos, não vêm do nada, mas como reações a ameaças externas, sempre masculinas. Assim, o sujeito responsável pelo ato mais abjeto que se pode cometer contra uma mulher vem produzindo, desde os anos 60, uma obra de visceral empatia com o feminino – mesmo em seu noir, Chinatown, Polanski fugiu da ideia da femme fatale manipuladora e inescrupulosa, contando com uma protagonista feminina vítima de terrível abuso masculino. São as complexidades do humano.                

A Pele de Vênus 
La Vénus a la Fourrure, 2013
Roman Polanski

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Batman e Batman - O Retorno


Não venho lidando bem com a passagem do tempo. Apesar de ainda jovem, sofro com a aproximação dos 30 anos, com a constatação de que a vida adulta chegou para ficar e de que o deixar de existir um dia pode ser, na verdade, qualquer dia. Muito por isso, imagens dos anos 90, a década em que cresci, têm mexido profundamente comigo. Bate saudade de ser criança, de ter uma vida inteira pela frente. Bate saudade das coisas que me empolgavam há 20 e poucos anos. Uma delas, parte importante das memórias que carrego dessa época, é a paixão pelos filmes da franquia Batman, sobretudo os dois primeiros, dirigidos por Tim Burton.

De Batman (lançado nos cinemas em 1989, mas que só fui assistir mesmo pelos idos de 1992, na TV Globo), guardo a longínqua lembrança da imagem de uma revista (não sei se era a capa) que me impressionara bastante, pois trazia o rosto ferido do herói mascarado. Batman sangrava e eu, provavelmente com uns 3 anos de idade, me angustiava com o horror daquela cena. Quando o filme finalmente foi exibido na TV, torci pelo homem-morcego, apesar de fascinado pelo Coringa de Jack Nicholson, e não entendi porque Bruce Wayne e Vicki Vale não ficavam juntos no final. Empolgado para a continuação que estreava nos cinemas, dei vexame na entrada do finado Cine Excelsior, em Juiz de Fora, ao me recusar a entrar na sala com medo do Pinguim interpretado por Danny DeVito em Batman – O Retorno, cujas imagens eram reproduzidas incessantemente numa pequena televisão ao lado da bilheteria. Também o segundo filme foi assistido apenas em casa, provavelmente num VHS dublado alugado numa locadora vizinha. Acho que foi nessa mesma locadora, aliás, que consegui um exemplar do belo pôster do filme, que preguei na parede do meu quarto (não durou muito, creio). Lembro também de uma matéria sobre Batman – O Retorno exibida no semanário Fantástico, também na Globo, que trazia a cena em que Mulher-Gato destrói uma loja de departamentos com seu chicote, sob os olhares de dois atônitos policiais.

Fragmentos de imagens que remetem a um tempo com o qual lido, hoje, nostalgicamente. Reconhecendo isso, temia que Batman e Batman – O Retorno, revisitados, se revelassem como tolices, sobretudo diante de encarnações mais sérias do herói no cinema, como a recente trilogia dirigida por Christopher Nolan. Engano meu, felizmente. Ainda impressiona como Burton, que em 1989 tinha apenas 30 anos de idade e As Aventuras de Pee-Wee e Beetlejuice no currículo, consegue criar um universo de forte identidade visual, expressivo, expressionista. Sua Gotham City remete a Metrópolis, de Fritz Lang, e, em O Retorno, o diretor escancara essa influência do cinema alemão dos anos 20 ao dar a um de seus personagens, que é na verdade o grande vilão da história, o nome de Max Schreck (protagonista do Nosferatu de Murnau). Nesse segundo filme, aliás, Burton parece ter maior controle sobre os elementos que compõem o universo esboçado em Batman, inclusive sobre algumas características estéticas que seriam definidoras de sua carreira: na estilização gótica do visual, que vai além da emulação dos filmes de gângster da década de 30 presente no primeiro filme, na música cheia de coros melancólicos e aterradores e no tema da rejeição do diferente, há ecos de Edward Mãos-de-Tesoura em Batman – O Retorno – não à toa, ambas as obras se tornariam referências do que pode ser chamado de estilo burtoniano. O diretor também se permite alguns voos mais arriscados, como ao optar por uma versão grotesca e repugnante do vilão Pinguim, nas muitas insinuações sexuais e na crítica ao mundo da política. O filme tem alguns pequenos problemas de roteiro, sobretudo envolvendo a cronologia de certos eventos, mas a trama é complexa e os personagens densos, sem nunca apelarem para um realismo que não caberia na Gotham ao mesmo tempo farsesca e trágica de Burton.

Batman é mais simples em sua concepção e realização, mas continua um grande filme de ação, envolvente e empolgante, e com Jack Nicholson alucinado em cena, devorando tudo ao seu redor. Tim Burton é muito competente na tarefa de estabelecer seu protagonista como um ícone, mito grandioso que vaga pela noite de uma cidade extremamente violenta, assombrando criminosos. Não interessa ao diretor, como interessaria a Nolan em Batman Begins, explicar os mecanismos da criação do mito (Nolan adora explicar tudo, afinal): a figura do homem-morcego é, por si só, mítica, e a câmera de Burton, com seus contra-plongées expressivos e ângulos inclinados, tem papel central para que acreditemos nisso. No entanto, é interessante como, ao mesmo tempo, o filme consegue estabelecer Bruce Wayne como um personagem trágico: a morte dos pais na infância parece ter gerado um homem apático, estranho, um tanto alheio ao mundo que o cerca. Michael Keaton, mullet à parte, surge perfeito no papel, discreto, evitando exageros e contribuindo, com seu físico a princípio nada condizente com uma figura heroica como o Batman, para a construção desse protagonista atípico.

Batman e Batman – O Retorno sobreviveram, portanto, ao teste do tempo, suas qualidades extrapolam qualquer memória afetiva. São grandes filmes, talvez até maiores que os da celebrada trilogia de Christopher Nolan. Tim Burton, antes de virar uma caricatura de si próprio, já foi um ótimo diretor. Está aí mais um motivo para sentir saudades dos anos 90. 


Batman 
Batman, 1989
Tim Burton

Batman - O Retorno 
Batman Returns, 1992
Tim Burton

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Que Horas Ela Volta?


Entre as marcas profundas que a escravidão deixou na sociedade brasileira, está a crença numa certa cordialidade das relações sociais, sobretudo no trabalho doméstico, espaço em que muitas vezes se reproduz a velha lógica da casa grande e da senzala. A figura da empregada doméstica, tão comum em nosso país, ganha, com o tempo, a confiança de seus patrões, se torna “da família”, mas sem nunca ultrapassar os limites de seu quartinho de fundos, sem nunca deixar de reconhecer o lugar imutável que ocupa nessa relação. O pacto silencioso diz que ela é inferior, é subalterna, mas sem precisar realmente proferir essas palavras.

Esse é o tema de Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Val, personagem de Regina Casé, é dessas figuras que vivem há anos na casa de seus empregadores, pelos quais nutre respeito quase servil, ao mesmo tempo que explode em afeto pelo filho deles, de quem sempre foi uma espécie de segunda mãe. É pelo olhar de Val que conhecemos esse universo: o que se vê, num primeiro momento, é a rotina pesada enfrentada pela empregada, mas à qual ela parece perfeitamente adaptada e da qual não reclama, e um carinho muito grande no trato com o personagem de Michel Joelsas, o jovem “patrãozinho”. Apesar da distância social, Val e Fabinho de fato se amam e Muylaert jamais duvida disso.

Mas, enquanto os recentes e igualmente excelentes O Som ao Redor e Casa Grande também diagnosticavam essa permanência de relações, afetivas e de poder, arcaicas no Brasil contemporâneo, interessa à diretora de Que Horas Ela Volta? as mudanças que vêm ganhando terreno no país na última década. Entra em cena Jéssica, filha de Val, mas filha também da “Era PT”, de um momento de expansão do consumo e das oportunidades para os mais pobres, e, consequentemente, de contestação do status quo das relações entre empregados e patrões. Enquanto Val migrou para São Paulo, há mais de dez anos, para trabalhar, Jéssica vai prestar vestibular na maior cidade do país, correr atrás do sonho de ser arquiteta e ascender socialmente. Ela já não aceita o lugar que lhe foi reservado pelos “de cima”, não adere ao pacto silencioso que lhe diz até onde pode ir.

Instalado o conflito, Muylaert claramente escolhe o lado desse “novo Brasil”, mas sem precisar, para isso, berrar “Revolução!” e “abaixo a burguesia!” a cada plano. Discreta e delicada, a diretora demonstra imensa preocupação com o desenvolvimento dos personagens, conseguindo levá-los, durante quase toda a narrativa, além dos estereótipos sociais aos quais estão ligados. O único momento em que isso não acontece é quando Muylaert exagera na postura de escárnio dos patrões diante da revelação dos planos de Jéssica de cursar arquitetura na USP. Ao optar por enquadramentos fechados, muito próximos dos rostos dos personagens, a diretora quase distorce aquelas figuras, transformando-as, ainda que por momento brevíssimo, em monstros. Algo parecido, aliás, acontece em Casa Grande, numa cena em que se discute a entrada nas universidades por cotas raciais e um rápido movimento de câmera quebra a seriedade do momento para ridicularizar o elitismo de determinado personagem. Se nos dois casos essas escolhas estéticas parecem pouco apropriadas diante da sobriedade adotada até ali por Muylaert e Filipe Barbosa (diretor de Casa Grande), é preciso dizer também que elas são detalhes irrisórios se colocadas ao lado dos ataques histéricos que essas mesmas elites criticadas nos dois filmes vêm proferindo contra as classes populares, sobretudo nos últimos anos, período coincidente exatamente com essa “Era PT” (ataques que vão da proibição dos “rolêzinhos” em shopping centers de bairros “nobres” ao recente texto criticando os baixos preços dos ingressos de cinema, que levariam a uma “má frequentação” desses espaços, passando, claro, pelos frequentes comentários maldosos sobre programas sociais como as cotas raciais e o Bolsa Família). 

Politicamente lindo, sobretudo por representar uma resposta contundente (talvez até mais que O Som ao Redor e Casa Grande) aos que resistem à mudança, Que Horas Ela Volta? quase me levou às lágrimas, ao final, também pelo desenvolvimento cuidadoso do drama de seus personagens, da relação de gradual aproximação entre mãe e filha. Muitos falam de Central do Brasil, até pela possibilidade de indicações ao Oscar, mas em sua mistura de luta de classes e afetos familiares, foi da obra-prima Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, que o filme de Muylaert me fez lembrar. Está em boníssima companhia, portanto.

Que Horas Ela Volta? 
Anna Muylaert 
2015

sábado, 15 de agosto de 2015

Quarteto Fantástico




Há um grande filme escondido nesse novo Quarteto Fantástico. Na verdade, nem tão escondido assim, já que sua ótima primeira metade denuncia os acertos do diretor Josh Trank no olhar que lançou para o universo dessa família de super-heróis. Está ali uma bem-vinda seriedade, que destoa imensamente do humor tolo dos filmes de Tim Story sem perder de vista a empolgação e o frescor próprios da juventude de seus protagonistas. Está ali um certo cuidado no desenvolvimento dos personagens, que consegue extrapolar estereótipos – Victor von Doom, por exemplo, é apresentado como um jovem problemático e de temperamento difícil, mas, ainda assim, apenas um jovem, que também experimenta situações divertidas com seus colegas de pesquisa e futuros antagonistas – e construir relações verossímeis. Trank investe bastante tempo nisso, adiando ao máximo a introdução do elemento fantástico em seu filme, e o resultado é positivo: o espectador se aproxima dos personagens, compreende minimamente suas motivações, se interessa por seus destinos, ainda que nenhum dos atores esteja além do correto (o que não deixa de ser um desperdício, considerando o talento de gente como Miles Teller, Michael B. Jordan e Jamie Bell).

Daí vem a também muito boa sequência da viagem interdimensional e do acidente, seguida da descoberta, pelos personagens, dos poderes que agora possuem. Trank também faz isso bem (afinal, ele tem um filme só sobre adolescentes lidando com poderes recém-adquiridos), exprimindo com competência a dor física experimentada por Reed Richards, Johnny Storm e Ben Grimm. Mas, infelizmente, o que vem na sequência carrega Quarteto Fantástico ladeira abaixo. Se sobrou tempo de tela para a dinâmica inicial entre os personagens, faltou muito para o uso militar de Ben e Johnny e para a fuga pelo mundo de Reed – passagens com potencial para gerar conflitos interessantes, mas que no filme de Trank aparecem como clipes rápidos e desimportantes. O mesmo vale para o retorno de Doom e seu confronto com os heróis: tudo é apressado demais, as motivações do vilão não ganham o devido destaque e ele é descartado sem maior cerimônia. O diretor afirmou que houve forte interferência do estúdio e que seu filme era outro – algo não muito difícil de acreditar, considerando o histórico da Fox (Demolidor, os dois Quarteto Fantástico anteriores). Ficará restrito à imaginação um Quarteto Fantástico com duas horas e meia de duração, com Richards vivendo experiências inusitadas enquanto aprende a controlar seus poderes em diferentes partes do planeta e com Grimm e Storm vivendo os conflitos de colocar seus dons à serviço do big stick americano. Uma ficção científica séria, mas protagonizada por adolescentes, como imaginou Trank, e talvez dirigida por alguém com mais poder sobre seus filmes e igualmente identificado com o gênero... um Christopher Nolan, quem sabe... Aliás, ter Nolan à frente de um Quarteto Fantástico não é mesmo uma má ideia, por mais irrealizável que ela pareça ser.    

De qualquer forma, esse novo filme dos heróis não é tão ruim quanto se vem apregoando por aí, mesmo com todos seus problemas. É um tanto curioso, aliás, ver um bocado de fãs dos estúdios Marvel detonando o trabalho de Trank. O que o diretor fez aqui não destoa muito dos Homens de Ferro e afins que tantos idolatram hoje em dia. Neles também encontramos narrativas apressadas (Capitão América: O Primeiro Vingador, alguém?), pouco cuidado com os vilões (alguém se lembra de como Caveira Vermelha, Monge de Ferro e Whiplash foram sumariamente descartados, no primeiro Capitão América e nos dois primeiros Homem de Ferro, respectivamente?) e subaproveitamento de tramas interessantes. Ao menos o novo Quarteto Fantástico é um filme inteiro, com começo, meio e fim, e não um pedaço de um quebra-cabeças supostamente genial que nunca se completa. Mas... é melhor não discutir com marveletes, certo?  


Quarteto Fantástico 
Fantastic Four, 2015
Josh Trank