terça-feira, 22 de maio de 2018

Amar Você


Em Três (2016), seu filme mais recente, Johnnie To prepara cuidadosamente um cenário (um hospital) com peças (policiais, bandidos, pacientes, médicos e enfermeiros) que se movem rumo a uma sequência de ação anunciada e esperada: o épico tiroteio filmado como um balé em câmera lenta, no qual To esbanja seu gigantesco domínio de mise-en-scène. Toda a narrativa de Três conflui para esse momento. Trata-se, para além desse caso, de um diretor conhecido pelo esmero com que registra os movimentos de corpos no quadro, especialmente para construir grandes cenas de ação, e de um cinema (o policial de Hong Kong a partir da década de 1980) que em boa medida se alicerça sobre tais cenas (como não pensar nos tiroteios, também em câmera lenta e acompanhados pelo revoar de pombas brancas, recorrentes nos filmes de John Woo?). 

Nesse sentido, é interessante observar como To inverte essa lógica em Amar Você (1995). A primeira meia hora é de ação quase ininterrupta. O protagonista Lau Chun-Hoi (Ching Wan Lau), policial truculento com o casamento em frangalhos, comanda uma operação fracassada para prender o poderoso traficante de drogas Gwan (Tsung-Hua To), vê dois de seus parceiros morrerem no processo, por pouco não despenca de um telhado, tem de lidar com um pedido ilícito na delegacia em que trabalha e, em seguida, com a ameaça de suicídio do requerente, vive um affair na movimentada noite da cidade e, ao descobrir que a esposa (Carman Lee) está grávida de outro homem, promove uma cena de violência no restaurante onde o casal se conheceu. Até que cai na emboscada preparada por Gwan e é deixado à beira da morte.

A partir desse ponto, Amar Você se torna quase um novo filme. To passa a se dedicar a momentos do cotidiano do policial ferido, que precisa se adaptar a uma rotina de recuperação dos movimentos (físicos) e dos momentos (afetivos) perdidos. Lau é visto, por exemplo, descobrindo suas recém-adquiridas limitações olfativas e gustativas, mas, principalmente, sendo cuidado pela esposa (que estava prestes a deixá-lo) e tentando, de alguma forma, reconstruir o casamento moribundo. Essas são cenas-chave para o desenvolvimento do personagem, nas quais To investe considerável carga dramática: vale tomar como exemplos a sequência relativamente longa que observa Lau (ainda desajeitado, dando seus primeiros passos após sair do hospital) seguindo a esposa na rua (acompanhado de uma canção romântica), descobrindo-a num encontro com seu amante e retornando ao lar para lhe preparar um jantar, visando a reconquistá-la; e aquela, já nos momentos finais do filme, em que ele interage com bebês no berçário de um hospital, buscando conhecer o filho que, apesar de não ser biologicamente seu, assumirá.

É verdade que, no epílogo de Amar Você, To retorna ao gênero ação, utilizando o confronto decisivo com o vilão inclusive como meio para resolver a questão conjugal presente no centro da trama. No entanto, o diretor parece tratar com certo desleixo esse momento, tanto na forma como ele é inserido na história (preso, Gwan se torna um personagem esquecido durante todo o segundo ato do filme, retornando oportunamente, quase como um Deus Ex-Machina, para esse fechamento), quanto em sua própria concepção visual. Retomando a comparação com Três – mas também com outros filmes de To e com exemplares contemporâneos do cinema de ação de Hong Kong –, Amar Você passa longe aqui de qualquer esforço por construção de algum tipo de balé violento, de mise-en-scène rebuscada. O primordial, no fim das contas, são mesmo as relações entre o protagonista e sua esposa, sobretudo a transformação dele de homem bruto e egoísta, espécie de trem desgovernado que passa pela vida dos que o cercam, em pai e marido dedicado.

Amar Você 
Mou Mei San Taam, 1995
Johnnie To

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