A passagem do cinema mudo para o sonoro foi um tanto traumática para alguns atores que, astros de outrora, viram suas carreiras desmoronarem por sua incapacidade de encaixar-se nos novos tempos. Filmes como Cantando na Chuva (1953) e O Artista (2011) tematizaram esse momento, de maneira bem-humorada no primeiro caso, com tons agridoces no segundo. Nenhum dos dois chegou perto do amargor de Crepúsculo dos Deuses (1950), clássico de Billy Wilder que pinta um retrato mordaz de uma Hollywood que descarta, sem piedade, figuras há até pouco tempo amadas pelo grande público. A comovente descida ao fundo do poço do personagem de Jean Dujardin em O Artista em nada se compara ao destino sombrio de Norma Desmond (Gloria Swanson), protagonista do filme de Wilder, ex-estrela do cinema silencioso ostracizada e esquecida, figura patética que vive isolada em sua mansão sonhando com o retorno dos dias de glória, acompanhada apenas de um mordomo fiel (Erich von Stroheim). O diretor, conhecido por comédias como O Pecado Mora ao Lado, Quanto Mais Quente Melhor e Se Meu Apartamento Falasse, fez aqui um drama pesado, um mergulho profundo num inferno distante da Hollywood glamourosa com a qual tantos sonham.
Parte do êxito de Crepúsculo dos Deuses se deve à crueldade de Billy Wilder. Seu cinema sempre foi carregado de certo cinismo, mesmo nos casos das comédias mais leves acima citadas, e, apesar de ele já haver filmado histórias sombrias anteriormente (Pacto de Sangue, Farrapo Humano) e de voltar a fazê-lo posteriormente (A Montanha dos Sete Abutres, por exemplo), talvez seja possível afirmar que nenhum desses trabalhos chegou perto da ousadia de Crepúsculo dos Deuses. Isso porque o diretor recrutou vítimas reais da máquina hollywoodiana para papéis importantes nesse seu filme demolidor. Gloria Swanson e Erich von Stroheim, por exemplo, interpretam versões exageradas de si próprios, já que ambos de fato foram, respectivamente, atriz e diretor de sucesso na era do cinema mudo, esquecidos a partir da década de 1930. E Wilder foi ainda mais além ao trazer para a narrativa de Crepúsculo dos Deuses cenas do filme Queen Kelly (1929), retumbante fracasso que abalou a carreira de Swanson e que tinha na direção justamente Erich von Stroheim. Ou seja, Billy Wilder expôs as feridas abertas de seus atores, borrando os limites da ética, com o propósito de fazer um bom filme. Acabou com uma obra-prima nas mãos, peça de sarcasmo e coragem que, entre outras coisas, revolucionou a narrativa cinematográfica clássica com sua narração em off conduzida por um morto (homenageada, muito tempo depois, em Beleza Americana). Em tempo de polêmicas sobre as relações de Alfred Hitchcock com suas atrizes, as escolhas de Billy Wilder em Crepúsculo dos Deuses parecem confirmar que, no caso de alguns cineastas, crueldade e genialidade andam de mãos dadas.
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